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Elza Soares: Um símbolo feminista brasileiro

Elza Soares já era símbolo de empoderamento feminino, representatividade, antirracismo e feminismo muito antes desses termos serem incorporados nos atuais debates sobre questões de gênero, racismo, machismo e misoginia no Brasil e no mundo.

Elza, que morreu aos 91 anos, de causas naturais, teve uma vida inteira marcada por essas lutas, mesmo que ela nunca as tenha buscado. Mas a cantora acabou se tornando porta-voz delas.

Periférica, mulher, negra, pobre, Elza nasceu e cresceu na favela de Moça Bonita, conhecida atualmente como Vila Vintém, no Rio de Janeiro, numa família de 10 irmãos. Filha de operário e lavadeira, sua condição de mulher pobre a obrigava a se dedicar aos afazeres domésticos desde pequena. No entanto, ajudar a mãe a despertou para o canto – e forjou a voz potente que a tornou uma das maiores intérpretes não só do Brasil, mas do mundo.

Desinibida desde criança, como ela dizia, Elza gostava de cantar enquanto carregava lata d’água na cabeça para as roupas que a mãe lavava. Costumava gemer forte quando pegava a lata cheia e a colocava na cabeça. O gemido forçava a rouquidão da voz, que já era naturalmente rouca. Aprendeu então a emitir os mesmos sons, grunhidos, que faziam os cantores de jazz, artistas que ela não conhecia, porque sequer ouvia rádio na época.

Com muitas bocas para alimentar, o pai da cantora a obrigou a casar com apenas 12 anos, e aos 13, ela foi mãe. Além da infância interrompida, Elza enfrentou outras tragédias. Seus dois primeiros filhos morreram de fome ainda recém-nascidos. Ela também já enfrentava uma rotina de violência doméstica cometida pelo marido. Aos 21 anos, ficou viúva.

No famoso episódio em que Elza, aos 13 anos, foi cantar no programa de rádio apresentado por Ary Barroso, ela estava também em busca de dinheiro para o remédio de seu filho recém-nascido. Ary Barroso olhou para aquela garota muito jovem com suas roupas simples e, numa tentativa de ridicularizá-la, perguntou de que planeta ela vinha.

Por ser mulher, negra e pobre, Elza poderia ter se sentido intimidada, encurralada. Poderia, quem sabe, ter abandonada o programa. Mas a garota olhou para aquele homem, mais velho e já consagrado, e deu a emblemática resposta: ‘Do Planeta Fome!’. Elza impressionou em sua apresentação, ganhou nota máxima e levou o prêmio.

“Na minha época, mulher só tinha direito de apanhar calada” – Elza Soares

Anos depois, Elza perdeu outros dois filhos e teve uma filha sequestrada quando ainda era bebê, que ela só foi reencontrar quando a menina já era adulta. A cantora teve 8 filhos no total. Um dos filhos mortos precocemente, aos 8 anos, num acidente de carro, foi Garrinchinha, de seu relacionamento com o craque Garrincha – assim como a cantora, o jogador morreu no mesmo dia 20 de janeiro, em 1983, em decorrência do alcoolismo.

No documentário “My Name Is Now, Elza Soares” (2018), da diretora Elizabete Martins Campos e do qual a cantora é tema, Elza conta, de uma maneira muito sincera, sobre o impacto da perda do filho em sua vida. “Foi a dor de ter perdido meu filho, que pensei que eu nunca mais ia me recuperar. Foi o momento da loucura, foi o momento em que eu subi as favelas, foi o momento em que me juntei aos bandidos, foi o momento que em eu cheirei cocaína, foi o momento em que eu quis fazer tudo com revolta, com raiva”, disse ela, com a voz triste de um luto que nunca passa para uma mãe.

Elza tentava superar as tragédias se apegando a Deus e focando em seu trabalho – mas as dores sempre a acompanharam. As próprias músicas que ela cantava visceralmente eram carregadas de suas histórias, de suas alegrias, de suas tristezas.

Aliás, entre os amores de Elza, seu relacionamento de 17 anos com Garrincha foi o mais marcante. E por diversos motivos. A relação amorosa entre os dois começou como um caso extraconjungal, já que na época o jogador era casado e tinha 8 filhas. Eles se conheceram em 1962, antes da Copa do Chile. Um ano depois, ele se desquitou da mulher (na época, não havia divórcio) para assumir Elza, mas a cantora foi acusada de ter acabado com o casamento Garrincha. Fãs e imprensa passaram a ataca-la. O casal foi alvo de perseguição, ameaças e xingamentos. Como mulher, Elza foi tachada como vilã da história.

O holofote ficou anos sobre os dois. Recentemente, numa entrevista, Elza afirmou: “Eu nunca gostei de ser mulher de fulano. Eu sou eu. Não era preciso ser ‘mulher do Garrincha’ para ser a Elza Soares. O Garrincha era marido da Elza Soares”. Os dois viveram uma relação conturbada, com histórico de agressões físicas e traições, além do abuso de álcool por parte de Garrincha. O casamento chegou ao fim em 1982.

Apesar de uma vida pontuada por tragédias, muitas perdas e relações conturbadas, Elza Soares fazia de sua carreira seu alicerce. Não havia ninguém que a fizesse desistir da música, das rédeas de seu trabalho. E isso desde que começou profissionalmente, ainda muito jovem, e numa época em que a mulher tinha de seguir as regras do patriarcado, de casar, ter filhos e ser dona de casa.

Dona de uma respeitada discografia, a artista fez de seus três últimos e bem-sucedidos discos, “A Mulher do Fim do Mundo” (2015), “Deus é Mulher” (2018) e “Planeta Fome” (2019), uma trilogia feminista e com traços biográficos, abordando temas como violência doméstica (como na canção ‘Maria da Vila Matilde’), empoderamento e resistência. Foram álbuns representativos, que simbolizaram a “Mulher do Fim do Mundo” que Elza sempre foi. O documentário “My Name Is Now, Elza Soares”, lançado nesse mesmo período, em 2018, reforça essa imagem de Elza como a força do feminino.

“Nossa luta não é de agora. Isso vem de tempo, a gente lutando muito, buscando um momento de vitória. Estamos neste momento agora. As mulheres estão mais livres. Nós estamos juntas, vamos nós, porque a gente junta faz uma guerra e uma vitória”, disse ela, numa entrevista em 2020, ao falar sobre feminismo e empoderamento.

A ‘Voz do Milênio’ se calou, mas seu exemplo de resistência como negra e mulher segue como legado em sua obra. E história de vida.

Fonte da matéria: CNN Brasil

– Autora: Adriana Del Ré | Janeiro 2022

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Emanoelle Cavalcanti

Acadêmica de psicologia, voluntária na Ong Médicos do Mundo