Entrevistas

Entrevista com Ricardo Lodi

O advogado e professor Ricardo Lodi Ribeiro deixou a reitoria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro para se filiar ao Partido dos Trabalhadores e se candidatar a deputado federal pelo estado. Se eleito, o primeiro projeto que pretende apresentar buscará fortalecer a autonomia universitária.

Trata-se de algo assegurado pela Constituição Federal, mas que não está tão bem regrado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996). A medida é importante, segundo Lodi, para reverter os retrocessos nas universidades públicas iniciados pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) e aprofundados por seu sucessor, Jair Bolsonaro (PL). A ideia do candidato é garantir autonomia administrativa (permitir que a comunidade acadêmica eleja seus reitores), orçamentária (para evitar cortes de recursos) e didático-científica (de forma a evitar interferências políticas no conteúdo a ser ensinado e pesquisado).

Fortalecimento da autonomia universitária impediria desmonte, diz Ricardo Lodi.

Lodi, que é sócio do sócio do escritório Ricardo Lodi Advogados, também pretende propor a criação de um plano nacional de assistência estudantil, de forma a auxiliar os alunos mais pobres e evitar que eles abandonem os cursos por falta de dinheiro. Como reitor da Uerj, ele quintuplicou os recursos para permanência estudantil durante a epidemia de Covid-19. Além disso, criou auxílios para transporte, alimentação, creche, material didático, moradia e uniforme (para o colégio).

A melhora na remuneração de professores e demais profissionais da educação é outra bandeira que o advogado pretende empunhar no Congresso Nacional. Ele também destaca a necessidade de elevar as bolsas para mestrado, doutorado e iniciação científica, de forma a atrair talentos para a academia.

Defensor da ex-presidente Dilma Rousseff em seu processo de impeachment, Ricardo Lodi diz que é preciso reconstruir a Justiça brasileira, de maneira a despolitizá-la e extirpar o lavajatismo. Para isso, é preciso que instituições como Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público efetivamente fiscalizem as atividades de magistrados, promotores e procuradores.

Na visão do professor, a qualidade média das leis brasileiras é baixa. E profissionais do Direito podem ajudar a mudar esse cenário. Ele ressalta que, à frente da Uerj, usou sua experiência como advogado para buscar caminhos legais para obter recursos para a universidade. E visa a replicar essa experiência no Parlamento.

Professor de Direito Financeiro, Lodi avalia que o teto de gastos “tem de ser revogado o mais rápido possível”. E defende uma reforma tributária que promova maior igualdade entre os brasileiros.

ConJur — Por que o senhor decidiu se candidatar a deputado federal?

Ricardo Lodi — Houve um convite do PT do Rio de Janeiro, na pessoa do presidente da Assembleia Legislativa do Rio, deputado André Ceciliano, que foi reiterado pelo presidente do PT-RJ, João Mauricio. No início eu hesitei um pouco, porque estava no meio do meu mandato de reitor da Uerj, que só terminaria no dia 31 de dezembro de 2023. Mas eles se sensibilizaram quanto à agudeza deste momento de 2022, com uma eleição muito importante, a necessidade de Lula, se vier a ser eleito, contar com uma bancada forte do PT em Brasília, na Câmara dos Deputados. E nós, que viemos da educação, temos uma necessidade muito grande de representação. No governo Bolsonaro, houve um verdadeiro desmonte das universidades, das escolas, da educação de um modo geral. E a intenção é trazer esse tema para o centro do debate do governo a partir da Câmara dos Deputados.

Com relação às universidades, existe muita coisa que o PT adotou como prática, mas não institucionalizou. Por exemplo, tanto Lula quanto Dilma Rousseff nomearam todos os reitores eleitos pelas comunidades universitárias. Mas Temer e Bolsonaro não adotaram essa prática — aliás, Bolsonaro fez exatamente o contrário, pois hoje há 33 reitores não eleitos pela comunidade acadêmica em universidades federais. Então nós queremos institucionalizar isso do ponto de vista da legislação, garantir autonomia universitária do ponto de vista administrativo, nas eleições diretas. E também do ponto de vista orçamentário. A Uerj passou uma situação muito difícil em 2017, 2018, quase fechou. Mas conseguimos dar a volta por cima. Mas nas universidades federais o ambiente é exatamente o oposto. Hoje há um desfinanciamento muito grave por aspectos ideológicos, baseado em uma guerra cultural contra as universidades. Então é preciso estabelecer também a autonomia no campo orçamentário. Igualmente no campo didático-científico. A Constituição estabelece esses três aspectos: educativo, orçamentário e didático-científico. Essa é uma pauta importante para mim, é uma das principais iniciativas que eu quero adotar.

Também quero levar um pouquinho do que fizemos na Uerj do ponto de vista da permanência estudantil. Nós conseguimos quintuplicar os recursos de permanência estudantil durante a epidemia, criamos vários auxílios, como auxílio-transporte, auxílio-alimentação, auxílio-creche, auxílio-material didático, auxílio-moradia e auxílio-uniforme para as crianças do colégio de preparação. Queremos não só institucionalizar isso para que não dependa de uma reitoria progressista, que seja uma política de Estado, como para tornar a prática nacional, por meio de uma política nacional de permanência estudantil. A Uerj foi pioneira nas cotas e, anos depois, as universidades federais as adotaram. Mas não adianta garantir a vaga, é preciso uma política de permanência estudantil para que não haja evasão desses segmentos que sempre tiveram tanta dificuldade de acesso à universidade.

ConJur — De modo geral, como avalia a qualidade das leis produzidas no Brasil?

Ricardo Lodi — De modo geral, a qualidade é baixa. Hoje a atividade legislativa está muito aviltada, a qualidade da base política precisa ser renovada. Mesmo quando há boas intenções, mesmo quando são pautas positivas, nem sempre há a técnica legislativa necessária. Os profissionais do Direito devem dar essa contribuição de aprimorar a técnica legislativa. Eu sou do Direito Financeiro. Busco encontrar caminhos para os recursos para atendimento de políticas públicas. Fiz um pouco disso na Uerj, de buscar onde estavam os recursos. Os recursos estavam na Constituição, o índice da educação, que nunca foi respeitado no Rio, passou a ser, permitindo que fizéssemos o que se chama de “pequena revolução da Uerj”, por conta dos auxílios, da expansão territorial da universidade. Nós queremos levar isso para todas as universidades, para toda a educação. A educação vai muito mal, piorou muito depois do golpe de 2016, houve um verdadeiro desmonte. Então essa experiência minha do Direito e da gestão da Uerj pode contribuir para o aprimoramento das atividades legislativas.

ConJur — A qualidade da Justiça se subordina à qualidade das leis?

Ricardo Lodi — Nos últimos anos, a Justiça foi utilizada como instrumento de atuação política por determinados grupos no país. Nesse contexto veio operação “lava jato”, todo esse punitivismo, que gerou consequências muito ruins. É claro que algumas alterações legislativas facilitaram esse caminho, como a lei da delação premiada (Lei 12.850/2013) e outras inovações que foram introduzidas no ordenamento nos governos do PT e que acabaram sendo utilizadas politicamente contra o próprio PT. É preciso uma revisão disso. Mas mais importante que o arcabouço normativo é nós protegermos a Justiça contra a sua utilização política, que hoje é muito grande. Há um certo descrédito com relação à operação “lava jato”, mas o lavajatismo ainda está presente em corações e mentes no mundo jurídico. É preciso combater isso. E o caminho para isso não é nem com alterações legislativas, é com reconstrução. É cumprir o devido processo legal, voltar a aplicar os princípios processuais previstos na Constituição, independentemente da capa do processo, independentemente de preferências partidárias e ideológicas que estejam por trás de cada uma dessas pessoas. Isso não é uma tarefa fácil. Essa reconstrução não é trabalho para quatro, cinco anos. É trabalho para uma geração.

ConJur — Qual é o papel do Legislativo na produção da justiça?

Ricardo Lodi — O Legislativo tem que aprimorar o ordenamento jurídico e pautar a Justiça. Nós criamos um simulacro de controles externos da Justiça. O Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público não cumprem o papel para o qual foram concebidos. A ideia de controle das instituições foi flexibilizada por uma participação muito majoritária das corporações. Esse ano tentou-se modificar isso sem êxito [com a proposta de reforma do CNMP]. Essa é uma contribuição que o poder Legislativo pode dar sem revisionismo, sem perseguições, sem olhar para o passado, mas para construir uma história nova, de um Judiciário forte, independente, comprometido com a Constituição.

A Constituição de 1988 apostou muito no Judiciário e no Ministério Público. Muitas vezes, o que nós vimos foi a utilização desses espaços para privilégios individuais, para compromissos que não são aqueles que a Constituição de 1988 garantiu. Agora estamos vendo as diárias, as viagens que foram utilizadas pelos procuradores da operação “lava jato”. O Tribunal de Contas da União está investigando tudo isso. O poder Legislativo também tem papel fiscalizatório em relação a esses abusos que foram cometidos no Ministério Público, modificando a história do nosso país, e para pior, como hoje todo mundo sabe. Assim, o Legislativo deve resgatar a imparcialidade da Justiça e do Ministério Público e a sua despolitização. “Despolitização” não no sentido de achar que tem uma atividade pública que possa ser exercida com completa neutralidade política. Isso não existe. Mas de seguir a Constituição, as leis, para que a Justiça não seja utilizada como instrumento de um grupo em detrimento de outro no jogo político. A política tem que ser desenvolvida dentro das quatro linhas, dentro do ambiente político, e não no ambiente judicial.

ConJur — Nesse sentido, alguns institutos inovadores estão passando por um momento de inflexão, como a colaboração premiada, a arbitragem e o compliance. Onde está o problema? Nos intérpretes ou na formulação legislativa?

Ricardo Lodi — Quanto à delação premiada, existe um problema conceitual a ser debatido na comunidade jurídica e no mundo político. Por mais que saibamos que houve deformação, que houve mau uso da lei, a própria ideia de delação premiada enseja complicações, porque é o réu, buscando se livrar das penas que lhe são imputadas, procurando imputar os outros. Dificilmente esse instituto tem como produzir resultados positivos para a realização da Justiça. Quanto aos instrumentos de arbitragem e compliance, penso que eles são importantes e as questões não são propriamente relacionados aos institutos em si. Pode-se aprimorar aqui ou acolá, mas o que houve é o mau uso deles dentro da perspectiva de utilização dos instrumentos da Justiça para fazer política.

ConJur — Em sua opinião, é possível criar parâmetros objetivos para se aferir o impacto econômico e social das leis?

Ricardo Lodi — O que se tem produzido nesse contexto decorre muito da má-compreensão da análise econômica do Direito, que chegou ao Brasil de uma forma totalmente diferente da qual foi concebida. Em geral, quando se faz uma análise econômica da aplicação das leis, pela experiência brasileira, o que se tem na verdade é a apreciação econômica por quem não entende de economia, a partir da compreensão dos desejos do mercado, que muitas vezes implicam a negação dos direitos fundamentais. Quer dizer, então deixa-se de aplicar direitos fundamentais em função daquilo que o mercado, por meio de seus arautos, na grande mídia, estabelece como correto. Se existe uma ciência que não é nem um pouco exata e que não tem nem um pouco de unanimidade é a ciência econômica. Só que no Brasil há um predomínio dessa ideia de austeridade seletiva, que aniquila direitos e transfere renda para o ápice da pirâmide social, que a tem utilizado como se não existisse outro modelo, como se a economia tivesse necessariamente que funcionar assim. A experiência que temos nesse sentido é muito ruim, é a negativa de aplicação da Constituição Federal em nome de uma compreensão de uma realidade econômica que não é compreensão de todo mundo, nem para todos. É a compreensão dominante no mercado e dos seus divulgadores.

ConJur — Mas é possível criar alguns parâmetros para se avaliar o impacto econômico e social das leis que não fiquem atrelados à dinâmica de mercado?

Ricardo Lodi — Depende do intérprete. O intérprete é sempre livre para adotar os parâmetros ideológicos que estão à disposição no mercado das ideias. Não dá para fazer interpretação do Direito, notadamente de uma perspectiva econômica, sem analisar o contexto social, econômico e cultural em que a norma vai ser aplicada. Isso é inerente à atividade de aplicação do Direito. O grande problema é que isso está sendo feito fora das balizas que a norma permite. A análise do contexto normativo é muito importante para identificar quais os sentidos possíveis da literalidade do texto nós podemos aplicar. O que está sendo feito hoje é simplesmente ignorar a norma, notadamente a norma que consagra direitos, para, a partir de uma apreciação de uma realidade econômica pelo olhar do mercado, deixar de aplicar esses direitos. Não existe Direito, não existe aplicação do Direito sem exame da realidade social e econômica para a qual a norma foi elaborada. Isso é inerente à existência da própria aplicação do Direito.

ConJur — Em sua opinião, a advocacia, a academia e demais profissionais do Direito deveriam ter maior participação no processo legislativo?
Ricardo Lodi — Sim. Os profissionais e estudiosos do Direito têm uma grande contribuição a dar. Isso porque a elaboração legislativa, para ser eficaz, para obter sucesso nos tribunais, não pode prescindir da contribuição dos profissionais de Direito, seja do ponto de vista da academia, seja do ponto de vista dos operadores do Direito. Os advogados deram uma grande contribuição recente à história do país com o combate aos abusos da “lava jato”, à prisão do ex-presidente Lula, à inelegibilidade dele. A participação dos profissionais do Direito foi decisiva para a restauração da democracia do país. É preciso que isso continue.

ConJur — Como especialista em Direito Financeiro e Tributário, como o senhor avalia a proposta de reforma tributária apoiada pelo governo Bolsonaro (PEC 110)?

Ricardo Lodi — Essa proposta não resolve o principal problema do sistema tributário brasileiro, como nenhuma das propostas em tramitação no Congresso Nacional resolve. O sistema tributário brasileiro tem dois graves problemas: a sua inequidade — quer dizer, o sistema concentra riquezas —, e a concentração de recursos nos estados mais ricos da federação. E não há no Congresso nenhuma reforma que atenda a esses dois pontos. Pelo contrário: as reformas são concentradoras, do ponto de vista federativo e do ponto de vista de renda. É preciso fazer uma reforma tributária prudente, que tenha como princípio o combate às desigualdades sociais e regionais. Nesse sentido, é preciso privilegiar os tributos diretos em detrimento dos indiretos, é preciso privilegiar a progressividade tributária da renda e do patrimônio e desonerar folhas de salário e a tributação sobre consumo. Mas há que se ter um grande cuidado, porque hoje, na atual repartição de recursos tributários, estados e municípios têm o consumo como principal fonte. É preciso que isso seja feito com muito cuidado, para não esvaziar recursos de estados e municípios, que estão bastante combalidos. Não dá para fazer uma reforma tributária sem discutir o pacto federativo.

ConJur — Como o senhor avalia a proposta de se criar um imposto sobre grandes fortunas?

Ricardo Lodi — Sou favorável. O imposto sobre grandes fortunas não é uma panaceia que vai resolver problemas arrecadatórios, ele não tem esse papel. Ele tem dois papéis: um relativo à questão de justiça, de se tributar mais intensamente aqueles que têm maior riqueza, e outro como elemento regulador, à medida que todo patrimônio dos contribuintes é objeto de tributação, do ponto de vista da mensuração e tributação de riquezas. Então, até mesmo com a alíquota baixa, o imposto sobre grandes fortunas é importante, tem sua finalidade.

Agora, a graduação da alíquota também é importante para evitar fuga de capitais, como ocorreu na França de François Mitterrand (ex-presidente). A alíquota tem que ser aquela que não estimule a evasão de capitais, até para que possamos ter a tributação sobre grandes fortunas como fruto de um esforço internacional, para que os países mais desenvolvidos não prejudiquem aqueles que estão em desenvolvimento.

ConJur — O senhor defende a criação de novas faixas de tributação do Imposto de Renda?

Ricardo Lodi — Sim. A progressividade do IR é muito incipiente. Não só do ponto de vista dos valores, que são objeto de tributação com alíquota maior, mas também das faixas. É engraçado que até a Constituição de 1988, não havia previsão de progressividade na Constituição, mas havia dez faixas de IR. Foi só a Constituição ser promulgada em 5 de outubro de 1988 e estabelecer que o IR é progressivo para, em dezembro de 1988, já ter uma medida provisória, que depois virou lei, enxugando para três faixas e praticamente aniquilando o discurso constitucional da progressividade. É preciso retomar essa trajetória no Legislativo.

ConJur — O Brasil é um dos poucos países do mundo a não tributar dividendos. Alguns críticos dizem que isso gera injustiça social e uma certa precarização do trabalho, porque os trabalhadores passam a ser contratados como pessoa jurídica, o que ainda reduz a arrecadação do Estado. A seu ver, o Brasil deveria voltar a tributar dividendos?

Ricardo Lodi — Sem dúvida. Essa é uma das principais iniquidades da legislação tributária. E esse tema é um pouco tabu entre os advogados, porque a nossa categoria acaba sendo um pouco privilegiada por conta da não tributação dos dividendos, só é tributado na pessoa jurídica. É claro que não se pode estabelecer o fim da isenção sem que os valores tributados à pessoa jurídica sejam tributados à pessoa física, seria demais. Eu defendo um modelo em que tudo seja tributado na pessoa física, independentemente da natureza da renda — seja lucro, seja salário, seja ganho de capital. E aquilo que foi tributado anteriormente na pessoa jurídica como antecipação de receita possa ser deduzido do que será pago na pessoa física. Aí haveria um sistema mais universalizante, onde todas as rendas seriam tratadas da mesma forma.

ConJur — Como combater a guerra fiscal sem prejudicar os estados mais pobres?

Ricardo Lodi — Esse é o maior desafio do sistema tributário em uma perspectiva federativa. Isso porque os remédios que foram introduzidos nos últimos anos para o combate à guerra fiscal praticamente aniquilam a competência tributária dos estados. Por exemplo, essa ideia do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) da Emenda Constitucional 109/2019 praticamente retira o ICMS e o ISS da competência dos estados e municípios. Não se pode esquecer que é inerente ao poder de tributar o poder de não tributar, para estabelecer incentivos que possam atrair investimentos para as regiões mais pobres do país. Não se pode confundir o poder de não tributar com guerra fiscal. A guerra fiscal se dá no abuso do poder de não tributar. Quer dizer, é praticamente aquela atividade que procura retirar investimento em outro estado ou outro município. Mas a lei complementar tem que ter mecanismos para prever o abuso do poder de não tributar sem aniquilar a arrecadação de estados e municípios. Caso contrário, como um estado ou um município mais pobre vai levar empresas e indústrias para o seu território, considerando que está longe do mercado consumidor, longe da mão de obra qualificada, longe do escoamento da exportação? Por que as empresas vão se instalar nesse local? Quando, a pretexto de combater a guerra fiscal, aniquila-se a possibilidade de estados e municípios estabelecerem benefícios fiscais, cristaliza-se a atual distribuição de riquezas no território nacional.

ConJur — Como o senhor avalia o teto de gastos? Pretende propor algo conta ele?

Ricardo Lodi — O teto de gastos tem que ser revogado o mais rápido possível. Essa é a maior bizarria que o Direito Financeiro brasileiro produziu. Não existe isso em lugar nenhum do mundo, a determinação constitucional que se congele gastos. E é preciso ressaltar que são praticamente só gastos sociais, porque a Emenda Constitucional 95/2016 congela a despesa excluindo o pagamento de dívidas. Então há um mecanismo constitucional que afeta todo o crescimento da arrecadação ao setor financeiro. Quer dizer, independentemente do que diga o orçamento, independentemente das decisões que o eleitorado tomou, no prazo de vigência da lei, que são quatro mandatos presidenciais, nós temos uma determinação constitucional para que todo o crescimento de arrecadação vindo do crescimento vegetativo da população, vindo do crescimento econômico, seja constitucionalmente canalizado para o setor financeiro. Não existe algo tão rigoroso no Direito Financeiro quanto o teto de gastos. Por isso que nenhum país adotou algo semelhante.

ConJur — Quando começou a epidemia de Covid-19, governos do mundo todo recorreram a medidas desenvolvimentistas, de estímulo à economia. O mesmo ocorreu em outras crises, como a de 2008. É preciso ter um Estado mais atuante na economia para gerar crescimento e reduzir desigualdades?

Ricardo Lodi — Sem dúvida. Esse foi o objeto do meu último livro, Finanças públicas na pandemia. Nós tivemos uma experiência no mundo inteiro que coloca em xeque a ideia de austeridade. Hoje, essa condenação do neoliberalismo ao gasto público está em xeque. Aliás, desde a crise de 2008, quando os países desenvolvidos multiplicaram a moeda circulante para combater a quebradeira generalizada do setor financeiro, sem que isso tenha produzido em nenhum momento inflação. Até hoje esses países lutam contra a deflação. Na verdade, é preciso retirar da sala esse bode que os monetaristas colocaram, que é desatualizado e ninguém mais pratica, de acreditar que a restrição à moeda poderá incentivar investimentos privados. É exatamente o contrário: o Estado tem o papel de injetar moeda na economia em momentos de escassez. O que o teto de gastos faz, o que a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) faz? Exatamente o contrário. Essa ideia de que, em momentos de crise, o Estado tem que apertar o cinto é uma ideia suicida. No século 20 já se viu que isso não funciona. Em momentos de crise, o Estado tem que injetar recursos para a economia não parar. Então é preciso uma rediscussão sobre o papel do gasto público e da tributação nas finanças públicas. E é essa discussão que eu quero levar para o Congresso Nacional.

ConJur — Voltando um pouco à questão da educação, muitos apontam que a carreira acadêmica está desvalorizada no Brasil. Os valores das bolsas de mestrado e doutorado não são reajustados desde 2013. Os vencimentos de professores de universidades federais não são corrigidos desde 2017 e sofrem perdas salariais desde 2011. Além de que são concursos que, no mínimo, exigem mestrado e, na maioria das vezes, doutorado, mas que pagam, no topo da carreira, menos do que outros servidores recebem ao ingressar na função. Como o senhor avalia essa questão? Pretende propor alguma medida nesse sentido?

Ricardo Lodi — Em primeiro lugar, é preciso que nós voltemos a valorizar o servidor público, seja ele de que categoria for. Os servidores públicos, há muitos anos, têm sido a Geni do país. “Joga pedra, joga tudo na Geni”. Isso tem que mudar. Na epidemia, foram os servidores públicos que salvaram o país. Os servidores públicos do Sistema Único de Saúde (SUS), das universidades, dos centros de pesquisa, da segurança pública. Foram eles que impediram que o desastre fosse ainda maior, mostrando o papel importante do serviço público para a população. Agora, também é preciso reconhecer que o Brasil não investe adequadamente na formação de seus profissionais da educação. Nos governos do PT houve um incremento por meio do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, mas ainda há um grande descompasso entre as carreiras docentes, seja nas universidades, seja nas redes públicas de educação, com os salários que o próprio serviço público oferece, como se a educação não fosse prioridade para os governos.

A carreira acadêmica é muito dura, porque, para o ingresso, exige uma formação de vários anos de conhecimento. É preciso mestrado, é preciso doutorado e é preciso sempre publicar, estar sempre estudando, estar sempre atualizado para conseguir se manter nos programas de pós-graduação. De outro lado, as bolsas para mestrandos, doutorandos e para iniciação científica estão perdendo, ano a ano, seu poder de atratividade. Então a academia vai perdendo cérebros, desde os mais jovens até profissionais com mestrado e doutorado, para a iniciativa privada, para o setor produtivo. Quando eu falo iniciativa privada não estou nem falando das universidades privadas, das escolas privadas, o que é outro assunto que precisa ser enfrentado, a precarização do trabalho docente nas instituições privadas. O futuro de um país desenvolvido, tecnológica, economicamente e cientificamente, depende da formação de crianças e jovens. E, para isso, é preciso investir na educação e na formação dos profissionais de educação. Não só professores, mas também técnicos educacionais, técnicos universitários. Os recursos que são atribuídos à educação não podem ser investidos apenas em prédios e obras. Essa é uma inversão de prioridades que vem sendo feita pelo legislador. Não se faz educação sem melhorar a remuneração desses profissionais, sem valorizar esses profissionais.

ConJur — Uma vez eleito, o senhor apresentaria um ou mais projetos logo no início do mandato?

Ricardo Lodi — Tem um projeto que eu quero apresentar, ao qual já me referi, que fortalece a autonomia universitária. É algo que está consagrado na Constituição, mas não está bem delineado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996). A lei é de 1996 e atendia a um contexto diferente do atual. É preciso fortalecer a autonomia universitária para além do espectro legislativo. Além disso, é preciso fazer um plano nacional de assistência estudantil. Não acredito em investimento em educação sem investir na possibilidade de os alunos mais carentes poderem desenvolver suas atividades. Não basta dar bolsa para cotista, é preciso dar condições para ele estudar. Isso nós fizemos na Uerj e é preciso fazer no Brasil inteiro.

ConJur — Há algum outro projeto que pretende apresentar?

Ricardo Lodi — Sim, há a necessidade de revogação da reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). Vendeu-se a ideia de que a reforma trabalhista traria empregos. Mas ela não trouxe empregos. Ela trouxe a precarização da mão de obra e, com isso, o empobrecimento do trabalhador. Quando o trabalhador perde direitos, perde poder de compra, reduzindo a demanda e reprimindo a necessidade de oferta, o que faz reduzir o número de empregos. Assim, embora possa passar a impressão de que, com menos direitos dados ao trabalhador, se reduz o custo das empresas, a reforma trabalhista, ao invés de criar empregos, acaba por reduzi-los, porque afeta diretamente a renda dos consumidores, que também são trabalhadores.

Fonte: Conjur.

Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa