Entrevistas

Entrevista Orlando Zaccone

Nas eleições municipais de 2008 os presos da 52ª. Delegacia Policial, em Nova Iguaçu, puderam votar. Apesar de previsto pela Constituição, a iniciativa é inédita no país. A ideia foi desenvolvida pelo delegado Orlando Zaccone e faz parte do projeto “carceragem cidadã”. O projeto engloba ainda assistência educacional, cultural, jurídica e de saúde aos presos, conforme previsto na Lei de Execução Penal, mas raramente cumprido.

Qual foi o quadro que o senhor encontrou na 52ª DP?

  • Encontrei um quadro que é o protótipo do que a Polícia Civil não quer mais. A 52ª DP tem carceragem porque ainda não passou pelo projeto de reforma da Delegacia Legal. Nós temos aqui um déficit muito antigo da época em que a delegacia englobava a área de atuação que hoje é da delegacia da Posse, a 58ª DP.

Sua vinda para cá coincide cronologicamente com a instalação do primeiro Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública Municipal. O que isso representou?

  • Quando esse primeiro GGI foi instalado nós não tínhamos noção de como isso seria importante dentro das políticas colocadas pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. O repasse de verbas federais hoje exige que no município esteja configurado um gabinete de gestão integrada.

Concretamente, em quê isso se traduziu?

  • Em ações que dizem respeito à custódia dos presos, principalmente. Cuidar do preso é um trabalho de segurança pública. Não é porque ele já cometeu o crime que nós não estamos falando de segurança pública, até porque esse preso vai voltar para a sociedade. E todas as ações que fizermos na custódia dele vão refletir numa possível mudança quando ele voltar para o ambiente social. Fica muito difícil termos uma ressocialização – que hoje nem é mais o termo correto, hoje se usa o conceito de redução de danos -, mas a prisão deve fazer algum sentido em termos de melhoria da pessoa, porque não estamos aqui trabalhando só por uma questão de castigo. Há muito tempo que essa idéia do castigo pelo castigo foi abolida, embora a pena de prisão ou mesmo a custódia tenha um caráter de reprovação pela prática de um crime, também há outras finalidades que só podem ser conseguidas se pudermos fazer um trabalho com os presos. Só que nas delegacias nós não temos nenhuma estrutura para isso.

Até porque, nem era papel da Polícia Civil abrigar presos?

  • Exatamente. Mas como essa é uma situação que existe de fato, começamos a trabalhar com o conceito de carceragem cidadã.

Como é isso?

  • Nós fizemos um projeto de carceragem cidadã em que nós tentamos colocar essas assistências que não existem na carceragem para o preso. Assistência educacional, cultural, jurídica, de saúde, odontológica, assistências essas previstas na Lei de Execução Penal. Às vezes me perguntam se eu estou fazendo isso por filantropia ou por questões religiosas, mas não é nada disso. É um dever do Estado porque a lei assim determina.

Os presos votaram neste ano. É a primeira vez que isso acontece no Brasil?

  • Sim. É uma decisão inédita e achamos que ela é um reflexo desses projetos que chamamos de carceragem cidadã. A idéia de que você tem que garantir aos presos os direitos que a lei lhes confere. E a Constituição só proíbe o voto do preso que já foi condenado em definitivo. O preso provisório está em fase de inquérito; esse pode votar porque a Constituição diz que em relação a ele não existe presunção de culpabilidade.

A seu ver, o papel do poder público, então, criando um ambiente favorável à não-violência ativa, se reflete em última instância na redução dos índices de criminalidade?

  • Esse é o grande papel do poder público. A repressão é somente um dever que o Estado tem, perante um contrato social que foi feito, de intervir se um indivíduo violar o direito do outro, para que possamos viver em liberdade na sociedade. Quando você reprime a prática de um delito, nada mais está fazendo do que dar uma resposta à violação de um contrato. Esse é o entendimento democrático do Direito Penal e da própria ação dos órgãos policiais. Agora, nós não podemos achar que é repressão que vai resolver o problema.Porque, na verdade, a repressão acaba ocorrendo após o problema. Ela não ataca as origens. Essa só é atacada quando se faz uma política de redução da vulnerabilidade.

E por conseguinte, lá fora também, porque essas pessoas vão sair daqui um dia.

  • Claro, e mesmo aqui dentro, porque os índices de criminalidade também ocorrem dentro da carceragem. A partir do momento em que você cria um trabalho de assistência, você diminui a vulnerabilidade. Desde que esse trabalho foi iniciado, eu não tive problema nenhum de rebelião, de fuga, de violência institucional, nada aqui dentro.

Quais são os próximos desafios?

  • Agora nós vamos tentar divulgar esse trabalho, se possível nacionalmente, a partir dessa oportunidade que o TRE colocou de os presos votarem, porque esse é um fato inédito. Com a visibilidade que acreditamos que o fato vai ganhar, vamos tentar colocar esse debate sobre a carceragem cidadã, de forma a sensibilizar outras unidades carcerárias a seguirem esse padrão de respeito à pessoa do preso. Outro desafio é estender os projetos para a área de trabalho. Estamos fazendo uma pesquisa sobre possibilidades de cursos profissionalizantes, de forma que o preso possa realizar um trabalho tanto para fazer a remissão da pena dele, já que a lei lhe garante a redução de um dia de pena a cada três dias trabalhados, quanto para se capacitar em alguma atividade que possa servir na sua reinserção no mercado quando ele estiver lá fora. Mas essa questão do trabalho precisa ser vista com cuidado porque em muitos estados isso vem sendo colocado de forma equivocada, como uma exploração de mão-de-obra, já que o trabalho do preso custa mais barato e as empresas não estão obrigadas a pagar determinados benefícios. É importante que o preso não só trabalhe, mas possa adquirir um conhecimento que vai lhe ser útil quando ele sair. O nosso próximo passo, então, é desenvolver esse tipo de visão mais social do trabalho do preso.

Entrevista de 2018 para ComCausa.

Portal C3 | Comunicação de interesse público | ComCausa 

Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *