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Memória: Chacina de Acari

Em 26 de julho de 1990, um grupo de onze pessoas decidiu passar o fim de semana em um sítio em Magé. O grupo foi sequestrados por policiais integrantes de um grupo de extermínio e até hoje permanecem desaparecidos. A maioria das vítimas era moradora da Favela de Acari, e sete delas eram menores de idade.

As investigações revelaram que o crime foi motivado por um desacerto com policiais militares do 9º BPM. Poucos dias antes do sequestro, três pessoas foram presas na casa de Dona Edméia, mãe de um dos desaparecidos, e os policiais exigiram um resgate de CR$ 5 milhões para não matá-los. Luís Carlos Vasconcelos, que também desapareceu no dia 26 de julho, negociou e conseguiu reduzir o valor para CR$ 2 milhões, sendo pagos CR$ 1 milhão e 800 mil.

Os policiais teriam ameaçado que, caso a quantia não fosse paga, matariam todos. Esse foi um dos motivos que levaram o grupo a planejar a ida para o sítio em Suruí, na cidade de Magé. Segundo o relato de Laudicena do Nascimento, de 71 anos, dona do sítio e uma das poucas sobreviventes, Wallace Oliveira do Nascimento, 17 anos, convidou vários amigos que moravam na Favela de Acari para passar uns dias no sítio de sua avó. Ao chegarem lá, Laudicena e seu filho Hédio do Nascimento, de 41 anos, informaram a Wallace que não havia lugar para tantas pessoas, porém, o grupo decidiu permanecer no local.

Outro morador de Acari teria informado aos policiais o local do sítio e os mesmo foram até o local em busca de ouro e joias, que teriam sido levadas para o lugar. Assim, por volta da meia-noite a caso do sítio foi invadida por homens armados e encapuzados permaneceram por cerca de uma hora agredindo a todos. Eles reviraram o lugar e destruíram móveis à procura de dinheiro, ouro ou joias. No local, além dos moradores de Acari, estavam também Hédio do Nascimento, e Wallace de Souza Nascimento, de 19 anos. Filho e neto de Laudicena. A dona do sítio que conseguiu ser esconder com seu outro neto de 12 anos no momento da invasão da casa em Suruí. A idosa e a criança fugiram pelo mato e foram estas os únicos sobreviventes daquela noite.

Após ameaças, os policiais negociarem a suposta libertação de todos por meio de um pagamento. A partir daí levaram as pessoas em uma Kombi, sendo as três meninas colocadas em um Fiat, e os levaram do lugar para um local desconhecido e até hoje as pessoas não foram encontradas. Entre os desaparecidos estão:

  1. Rosana Souza Santos, 17 anos – filha de Marilene Lima de Souza (falecida em 15/10/2012 – tumor no cérebro) e namorada de “Lula”;
  2. Cristiane Souza Leite, 17 anos – filha de Vera Lúcia Flores Leite (falecida em 10/08/2008) e namorada de “Moi”;
  3. Luiz Henrique da Silva Eusébio, 16 anos – filho de Edméia da Silva Eusébio (assassinada no dia 15/01/1993 ao sair de um presídio no Centro do RJ, onde buscava informações sobre o caso);
  4. Hudson de Oliveira Silva, 16 anos – filho de Euzilar Joana Silva Oliveira;
  5. Edson Souza Costa, 16 anos – filho de Teresa de Souza Costa;
  6. Antônio Carlos da Silva, 17 anos – filho de Ana Maria da Silva;
  7. Viviane Rocha da Silva, 13 anos – filha de Márcia da Silva;
  8. Wallace Oliveira do Nascimento, 17 anos – filho de Maria das Graças do Nascimento;
  9. Hédio Oliveira do Nascimento, 30 anos – filho de Laudicena Oliveira do Nascimento (falecida);
  10. Moisés Santos Cruz, 26 anos – filho de Ednéia Santos Cruz;
  11. Luiz Carlos Vasconcelos de Deus, 32 anos – filho de Denise Vasconcelos.

Falhas e preconceitos na investigação

Mesmo após a queixa ter sido registrada na 69ª DP de Magé, nenhum policial compareceu ao local para fazer o levantamento do crime. O desdém do Estado seria pelo fato das vítimas serem pobres e, entre eles, haviam três rapazes com passagem pela Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (Wallace de Souza Nascimento, 18 anos; Moisés dos Santos, o “Moi”, 26 anos; e Luís Carlos Vasconcelos de Deus, o “Lula”, 32 anos). Iniciava-se assim todo um procedimento discriminatório em relação ao caso.

Três anos depois, a reportagem do Jornal O Dia – de 12 de setembro de 1993 – noticiava que foram reconhecidos por fotos como autores desta invasão e extorsão os soldados Carlos Alberto de Souza Gomes, Eduardo José Rocha Creazola, o “Rambo”, Evaldo Barbosa do Nascimento, Paulo Roberto Borges da Silva e Wilton Elias da Cunha, todos do 9º BPM de Rocha Miranda – três destes suspeitos de participação na Chacina de Vigário Geral, em 29 de agosto de 1993. Segundo um relatório, todos estes faziam parte de um grupo de extermínio denominado “Cavalos Corredores”, supostamente liderado pelo, então, comandante do 9º BPM, Coronel Emir Larangeira.

O grupo denominava-se “Cavalos Corredores” por sua entrada na favela fazendo barulho como se fosse uma tropa, espalhando terror pelas vielas, invadindo casas, extorquindo e agredindo pessoas. Uma reportagem do Jornal O Dia divulgou trechos de um documento do Serviço de Homicídio da Baixada Fluminense acusando o coronel Emir Larangeira de chefiar o referido grupo e de se proteger atrás da imunidade parlamentar, já que se elegeu para deputado estadual em 1990. Algumas testemunhas, na época, acusaram vários policiais de extorquir moradores e violentar meninas, além de crimes de morte, bem como, denúncias de desvio de armas apreendidas do tráfico para serem utilizadas por grupos de extermínio formados por policiais militares.

Segundo Emir Larangeira, em entrevista publicada pelo jornal O Povo, só existe uma explicação para o crime: teria sido praticado por uma quadrilha rival, pois, na véspera do fato, um rapaz chamado “Jacaré”, que estava junto com o grupo, com a desculpa de que estava com saudades do filho, resolveu ir embora do sítio. “Jacaré” estaria se unindo a uma nova quadrilha, em Parada de Lucas e, na verdade, dera as coordenadas para que seus novos parceiros executassem o crime.

Para Emir, o caso tinha virado uma bandeira política do PT, pois, todos que estavam investigando – o delegado Hélio Luz e Ivanir dos Santos – secretário do CEAP (Centro de Articulação das Populações Marginalizadas) eram vinculados ao PT. Também associava as mães das vítimas aos traficantes de drogas de Acari, pois, quando chegou à delegacia no dia do reconhecimento dos policiais percebeu que todos participaram da prisão de vários marginais de Acari, e o advogado das “Mães de Acari”, Salvador Menezes Couto, era conhecido como “defensor dos bandidos da favela”. Entendeu tratar-se de uma cilada, uma vingança dos traficantes.

“Batalhão de bandidos”

Muitas das denúncias foram feitas por militares de alta patente, como um sucessor de Larangeira no 9º BPM, Coronel César Pinto, que observou os vícios existentes entre os policiais militares que, segundo suas declarações, “faziam o que bem entendiam”. Verificou que 10% da tropa estavam acostumados a ganhar dinheiro participando de extorsões contra traficantes, ladrões e outros marginais; classificou o 9º BPM como “um batalhão de bandidos” e que tudo era feito com a anuência do comandante conforme a reportagem de 1993.

Um informante do 9º BPM e também da DRFC – Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas -, Carlos Roberto Freire, em depoimento aos investigadores da 2ª Seção do Estado Maior da PMERJ, disse ter levado cinco dos sequestradores a Magé, em uma cilada armada a pedido dos soldados do 9º BPM – Carlos desapareceu após prestar depoimento, porém, foi localizado preso em outro Estado. Os investigadores descobriram, ainda, a criação dos “Cavalos Corredores”, grupo de extermínio do 9º BPM formado por alguns policiais.

Atualmente reformado, Emir Larangeira foi absolvido desta acusação, cujas sentenças disponibiliza em seu site na internet.

Busca pelos desaparecidos

Em março de 1993, reportagem do Jornal O Dia noticiava o conteúdo de uma carta enviada à sua redação, ao vice-governador Nilo Batista e ao chefe da Polícia Militar, Coronel Walmir Brum, por um comerciante de Duque de Caxias. Com a ajuda de um mapa, dizia que os corpos estavam na Curva da Morte, na Estrada Velha de Petrópolis, perto de Pau Grande, distrito de Magé, a 12 km de uma área escavada anteriormente.

Em reportagem de 21 de setembro de 1993, outra testemunha disse que os corpos de alguns dos sequestrados foram levados para a Ilha de Itaoca, em São Gonçalo.

Em 1994, as mães de Acari receberam uma denúncia de que seus filhos tinham sido jogados aos leões do sítio do ex-policial civil, João da Silva Bistene, o “Peninha” e, em 2005, coincidentemente, receberam a mesma denúncia.

Foram realizadas buscas no local ainda em 1994 e na Rua Isaac Bistene 209, Praia de Mauá, foram encontrados cinco leões, sendo que apenas 2 dois sobreviveram, pois encontravam-se em péssimas condições de saúde e há uma semana sem água e comida, isolados em jaulas individuais. Uma veterinária esteve no local e disse que os leões não comeriam gente e ponto final! Na época o ex-policial civil, João da Silva (Peninha) já estava morto, foi assassinado em 1991 pelo soldado PM Filomeno Ferreira Mendes, na Ilha do Governador.

Em outubro de 1995 os jornais noticiavam que um ex-PM, identificado apenas como “C”, apontou o Rio Inhomirim como o local onde os corpos foram abandonados pelo policiais, liderado pelo ex-detetive João da Silva Bistene, o “Peninha” – considerado o xerife da área, relatando que os policiais pegaram as pessoas no sítio, levaram as armas e o dinheiro e, depois, estupraram as meninas e cortaram os traficantes, jogando-os posteriormente no rio. Apesar disso, os policiais acreditavam que o local da desova era o Cemitério de Bongaba, em Piabetá, Magé, local onde foi encontrada a Kombi do filho de Laudicena.

A única pista do desaparecimento que os policiais tinham era a Kombi KK 5526, com a parte traseira queimada e manchas de sangue no seu interior, encontrada próximo ao cemitério de Bongaba em Piabetá. A perícia, no entanto, fora inconclusiva, pois, constava que a kombi era utilizada para o trabalho de Hédio, que vendia carne de porco, o que poderia justificar a quantidade e sangue encontrado no veículo.

Em março de 1999, mais uma vez, denúncias reafirmaram que os corpos estariam no cemitério clandestino de Mongaba, exatamente onde tinha sido encontrada a kombi do filho de Laudicena. As mães Vera e Marilene repassaram a denúncia a uma promotora de Magé que, a princípio, queria um geólogo para detectar as ossadas; este cobrou R$ 3.800 para realizar o trabalho – dinheiro que nem o MP e nem as mães tinham –, o que foi conseguido rapidamente com o Ministro da Justiça, na época, Renan Calheiros.

No entanto, a promotora, sem qualquer motivo aparente, se recusou a utilizar os serviços do geólogo e utilizou um equipamento de uma universidade – uma máquina escavadeira – 45 dias depois em um dia de chuva, o que, segundo o geólogo destruiria os ossos que ali estivessem, pois, devido ao tempo em que estariam enterrados no local, estariam muito frágeis, devendo ser manuseados delicadamente e com pincéis. Perguntada ao RJ TV o motivo de sua conduta, a promotora simplesmente respondeu que chamou as pessoas que ela achava interessadas. Vera, uma das mães perguntou indignada: “Nós não somos interessadas?”.

Assassinato de Edméia da Silva

Edmeia da Silva Euzébio, 48 anos, era moradora da favela de Acari, era ex-presidiária, ex-mulher de traficante, que se envolveu em delitos no passado, levara um tiro na perna e teve dois filhos: Rosângela e Luiz Henrique Euzébio da Silva, o “Gunga”, que foi sequestrado. Em 1990, Gunga, com 18 anos, estava prestes a servir o Exército. Às vésperas da convocação, arrumou as malas e viajou para o sítio com os amigos e nunca mais voltou.

Obcecada por encontrar seu filho, Edmeia da Silva Euzébio foi assassinada às 16h, com dois tiros na cabeça, ao sair do Complexo Penitenciário Frei Caneca, no Centro do RJ, após visitar Jorge da Silva, seu filho de consideração, na tarde do dia 15 de janeiro de 1993, mesmo ano em que aconteceram as chacinas da Candelária (julho) e de Vigário Geral (agosto). Testemunhas disseram que dois ocupantes de uma Parati vermelha com placa fria chamou Edméia e disparou.

Edméia foi morta na rua Júlio do Carmo, próximo à estação Praça Onze do metrô, enquanto Sheila da Conceição, de 25 anos, foi assassinada na esquina das ruas Carmo Neto e Afonso Cavalcante por ter assistido a execução.

Segundo as outras mães de Acari, ela comentara em seu depoimento na 10ª Vara Criminal do RJ, dez dias antes, que estaria recebendo ameaças e acusava Ubiratan da Cunha – que preso na Esmeraldino Bandeira nesta época -, Alberto Lacombe e Rubens “Jacaré” de terem participação na chacina de Acari, ajudando policiais civis e militares.

Edméia teria conseguido informações sobre a localização dos corpos dos desaparecidos em Acari. Os denunciados eram integrantes do “Cavalos Corredores” e estavam envolvidos com extorsões e outros crimes. Segundo Sueli Vieira, que trabalhava com o parlamentar e foi localizada pelo coronel PM Walmir Brum, a reunião para matar Edméia teria ocorrido no gabinete do então deputado estadual Emir Larangeira, na ALERJ – fatos noticiados pela mídia.

A denúncia foi recebida em 11 de setembro de 2011 e em 10 de abril de 2012, incursos os denunciados no artigo 121, §2º, incisos I, IV e V, na forma do artigo 29, ambos do Código Penal (2 vezes). Após dois adiamentos da Audiência de Instrução e Julgamento, foi realizada uma no dia 31 de julho de 2012, sem qualquer sentença, sendo designado o dia 08 de outubro de 2012 para sua continuação, novamente redesignada para 26 de novembro de 2012. Nesta última, foi ponto facultativo, sendo redesignada a audiência para 05 de dezembro de 2012, quando foi realizada e determinada a retirada dos endereços das testemunhas do caso. Nova audiência designada para o dia 25 de março de 2013 e, novamente, para 08 de maio de 2013 e de novo para agora, dia 31 setembro de 2013.

Em 02 de outubro de 2012 foi desmembrado o processo em relação a Washington Luiz Ferreira dos Santos. Emir interpôs recurso ao STJ objetivando o trancamento da ação penal por ausência de justa causa e divergências nos depoimentos que embasam a acusação. No entanto, a liminar foi indeferida (RHC n. 34.921/RJ – Quinta Turma do STJ). Embora o tempo do crime tenha sido janeiro de 1993, o recebimento da denúncia é causa interruptiva da prescrição (art. 117, I do CP), portanto, considerando o marco o ano de 2011 ou 2012, ainda temos até 2032. Interessante os autos datarem de 1998 e a denúncia ter sido recebida APENAS 13 anos depois.

O juiz Fábio Uchôa, titular da 1ª Vara Criminal do Fórum Central do Rio, decidiu em 22 de outubro de 2014 submeter a julgamento pelo Tribunal do Júri sete acusados de participar do assassinato da diarista Edmea da Silva Euzébio, que liderava o grupo conhecido como “Mães de Acari”, que nunca encontrou os corpos de 11 jovens sequestrados em 1990.

De acordo com a denúncia, o crime teria sido ordenado pelo coronel reformado da Polícia Militar e ex-deputado estadual Emir Campos Larangeira. Além dele, também são réus os policiais militares Eduardo José Rocha Creazola, o “Rambo”, Arlindo Maginário Filho, Adilson Saraiva Hora, o “Tula” e Irapuã Ferreira; o ex-PM Pedro Flávio Costa e o servidor municipal Luiz Cláudio de Souza, o “Mamãe” ou “Badi”. A denúncia aponta ainda a participação de uma oitava pessoa, o agente penitenciário Washington Luiz Ferreira dos Santos, cujo processo foi desmembrado do principal e está na fase de produção de provas.

Edmea teria sido morta por ter conseguido novas informações que localizariam os adolescentes de Acari – um deles seu filho – sequestrados em um sítio de Magé, na Baixada Fluminense. Segundo a denúncia do Ministério Público do Rio (MP-RJ), os acusados integravam o grupo conhecido como Cavalos Corredores, que agia sob as ordens do coronel Emir Larangeira, principalmente na década de 90, época em que o oficial comandou o 9º BPM (Rocha Miranda), unidade responsável pelo policiamento na área do bairro de Acari, na zona norte da cidade.

O caso, que chegou a ser arquivado, passou por uma reviravolta em 2011, após o depoimento de nova testemunha. Ela contou que a reunião para matar Edmea teria ocorrido no gabinete do então deputado estadual Emir Larangeira, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). A data de julgamento dos acusados somente será definida após o julgamento de possíveis recursos. Todos poderão recorrer da decisão em liberdade.

Arquivo Morto

Em 2011, o Estado expediu a certidão de morte presumida de uma das vítimas, Viviane Rocha da Silva. Já em 25 de julho de 2010 ocorreu a prescrição desse emblemático episódio trágico do noticiário nacional: pessoas desaparecidas, corpos não encontrados, famílias destruídas, incerteza, angústia, assassinatos misteriosos, informações desencontradas, desinteresse, osquestração política, corporativismo, um sem número de substantivos, adjetivos e sentimentos, como impotência, humilhação, desprezo, negligência e esquecimento por parte das autoridades.

Ao longo dos vários anos, o que essas mães ouviram das autoridades foi “não tem corpo, não tem crime”.

Fontes:

Memória: Chacina da Baixada

| Editoria Virtuo Comunicação

| Projeto Comunicando ComCausa

| Portal C3 | Instagram C3 Oficial

Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

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