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Cartola o som transgressor dos morros

No cenário musical brasileiro, o nome Cartola ressoa como uma melodia atemporal, perpetuando-se como parte essencial do rico patrimônio cultural do país. Nascido Agenor de Oliveira em 11 de outubro de 1908, no Catete, Rio de Janeiro, o artista não apenas moldou os compassos do samba, mas também deixou sua marca singular nas letras, sendo o autor de um clássico imortal: “As Rosas Não Falam “.

Desde criança, Cartola teve o privilégio de imergir nos festejos populares do Rio de Janeiro. Nas celebrações do Dia de Reis, seus familiares desfilavam pelas ruas, vestidos com fantasias e acompanhados por cavaquinhos e violões, deixando uma semente musical plantada na mente do jovem Agenor.

Os bancos escolares foram palco das primeiras notas da trajetória de Cartola, mas sua orientação para o mau comportamento frequentemente o conduzia à expulsão. O estudante inquieto passou por diversos grupos escolares, incluindo o Rodrigues Alves, concluindo apenas o curso primário.

Aos onze anos, a vida de Cartola tomou um novo rumo com a mudança de sua família para o Morro da Mangueira. Nesse ambiente boêmio, o jovem músico começou a explorar as rodas de samba e a vida noturna, demonstrando suas habilidades com violão e cavaquinho.

A tragédia aconteceu à porta quando, aos quinze anos, Cartola perdeu sua mãe. Com a partida dela, seu pai, Sebastião, instou-o a trilhar seu próprio caminho. Sem um lar definido, as madrugadas foram testemunhas da busca pela sobrevivência na boemia e malandragem cariocas.

Cartola, em busca de estabilidade, buscou emprego em uma tipografia, mas a melodia de sua alma não se encaixava nos ritmos da impressora. Abraçou, então, a construção civil, tornando-se aprendiz de pedreiro. Nesse período, especificou o chapéu-coco, dando origem ao epíteto “Cartola”.

Um capítulo crucial na vida de Cartola surgiu quando uma vizinha de seu barraco, Deolinda da Conceição, decidiu compartilhar sua jornada. Com dezoito anos, Cartola e Deolinda embarcaram em uma vida em comum, e ele assumiu o papel de pai para a filha dela, criando laços que transcenderiam as convenções sociais da época.

Assim, a vida de Cartola se entrelaça com a música, a boemia e as experiências singulares, deixando o legado de um ícone que transcende gerações, ecoando nas notas de “As Rosas Não Falam” e na rica história do samba brasileiro.

Estação Primeira da Mangueira

No encontro marcante com Carlos Cachaça, que viria a se tornar seu parceiro essencial na composição e nas noites boêmias, nasceu o vibrante bloco carnavalesco “Bloco dos Arengueiros”.

À medida que o tempo passava, os visionários criadores planejaram expandir suas fronteiras, e em 1928, emergiram a “Estação Primeira” – um nome que homenageava a primeira parada dos trens suburbanos que deixavam a cidade.

Foi Cartola, não apenas o escolhidor de nomes, mas também o criador da sugestão de verde e rosa para as cores da agregação. Posteriormente, a “Estação Primeira da Mangueira” se consolidou como uma escola de samba respeitada.

Entre os diversos membros destacados da escola, nomes como Saturnino Gonçalves, Marcelino José Cláudio, Francisco Ribeiro e Pedro Caymmi se destacaram. “Chega de Demanda” foi o samba inaugural que marcou os compassos da Estação Primeira.

Nos primórdios da escola, os instrumentos limitavam-se a tamborim, pandeiro, violão e cavaquinho. Surdo, reco-reco e cuíca foram incorporados posteriormente, trazendo uma rica complexidade ao som pulsante da Estação Primeira da Mangueira.

O episódio de 20 de fevereiro de 1976 e a construção da Ditadura para “Silenciar a Mangueira”

Há muito tempo, uma imagem emblemática de Cartola, capturada por Eurico Dantas, circula nas redes sociais, acompanhada por uma breve descrição sobre o mestre da Mangueira sentado em protesto contra a ação policial que ocorreu no Morro da Mangueira. Essa imagem, porém, vai além de um simples protesto silencioso no chão.

Nove dias antes do desfile de carnaval em 29 de fevereiro de 1976, uma polícia militar realizou uma blitz no Morro da Mangueira, resultando na prisão de 60 pessoas sem documentos, incluindo o filho de Cartola. O incidente foi documentado pelo Jornal Globo e pelo Jornal do Brasil em 21 de fevereiro de 1976.

A abordagem violenta da polícia contra o filho de Cartola, que foi estacionada próximo ao Palácio do Samba, resultou em intervenção por parte de Cartola, Dona Zica, e outros familiares, culminando em agressões policiais. A foto icônica de Cartola, desolada no chão, capturada por Eurico Dantas, reflete mais um episódio de repressão policial contra comunidades marginalizadas.

Os artigos do Jornal do Brasil e do Jornal Globo, ao abordarem o incidente, não questionaram a ação policial, destacando apenas a abordagem a Cartola, sem reconhecimento ao grande mestre. Isso evidencia a violência policial sistemática contra os moradores do Morro da Mangueira, onde apenas a notoriedade do morador parece importar.

Não há declarações de que a repressão estava relacionada ao ensaio da escola de samba, que seria vice-campeã do Carnaval de 1976. No entanto, a foto de Cartola no chão após o incidente destacou a resistência constante contra a repressão à cultura negra e ao carnaval desde os tempos da escravidão.

A resistência e a ancestralidade inspiraram Cartola a escrever “Silenciar a Mangueira” em 1980, não apenas como resposta ao incidente de 20 de fevereiro, mas como um manifesto contra a repressão constante. O samba destaca a importância da união entre as escolas de samba Mangueira, Portela, e a extinta Deixa Falar.

Cartola inicia o samba com o verso emblemático “Silenciar a Mangueira, não”, enfatizando que a luta não é travada isoladamente. Ele menciona adversários como Osvaldo Cruz, terminando a primeira parte com a reflexão sobre a importância da escola de samba Estácio de Sá. A segunda parte destaca os ancestrais, representados por figuras como Cartola, Ismael, e Paulo, simbolizando a raiz e a amizade que transcende as rivalidades no carnaval.

Estácio, Mangueira e Portela são pilares da ancestralidade do samba, cujas histórias contam como narrativas dos morros e das comunidades. Essas histórias não são apenas registros, mas instrumentos que conduzem os indivíduos de volta às raízes de sua própria grandeza, reafirmando a importância da memória e da luta contra o silenciamento do território.

Décadas de 40 e 50

Em 1940, o renomado maestro Leopold Stokowski desembarcou no Brasil acompanhado pela Orquestra Sinfônica da Juventude Americana. Intrigado pela riqueza da música popular brasileira, Stokowski decidiu gravar que contassem com a participação de artistas locais destacados.

O célebre compositor Villa-Lobos, à época, empreendeu uma jornada até o morro para convidar Cartola para participar das gravações, que ocorreriam a bordo do navio Uruguai, ancorado no cais da Praça Mauá. O elenco também conta com a presença de notáveis ​​como Donga, Pixinguinha e outros expoentes da música brasileira.

Esse período marcou o início de uma nova fase para Cartola, que passou a apresentar suas próprias composições e a se destacar em diversas estações de rádio. Em parceria com Paulo Portela, convertido o programa “A Voz do Morro”, no qual mensalmente apresentava sambas de sua autoria, desafiando os ouvintes a batizá-los.

Em 1944, além de assumir o papel de Diretor de Harmonia da Mangueira, Cartola foi nomeado Presidente de Honra da Ala dos Compositores. Entretanto, dois anos mais tarde, uma meningite o atingiu, forçando-o a se suspender temporariamente de suas atividades na escola de samba. Logo após sua recuperação, saiu a triste perda de Deolinda, que havia cuidado dele durante a enfermidade.

Em busca de novos horizontes, Cartola foi viver com Donária, deixando o morro e estabelecendo residência em Nilópolis e, posteriormente, no Caju. Durante esse período, visitas distantes do universo do samba, e barcos sobre sua morte circularam amplamente.

No final da década de 1950, impulsionado por Dona Zica, irmã da esposa de Carlos Cachaça, Cartola retornou à sua amada Mangueira. Ali, encontrei o carinho e o respeito de uma comunidade que o reverenciava. Esse retorno marcou o renascimento artístico de Cartola, solidificando seu lugar como uma figura amada e respeitada no cenário musical brasileiro.

Décadas de 60 e 70

Em 1961, as sextas-feiras ganharam status de ritual para os amantes do samba, com encontros obrigatórios na residência de Cartola. Nesse cenário, personalidades como Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola se reencontram, regados a cerveja e aos petiscos preparados por Zica, esposa de Cartola. O ambiente tornou-se tão emblemático que deu origem ao renomado restaurante “Zicartola”, situado na Rua da Carioca, no coração da cidade.

O jornalista Sérgio Porto desempenhou um papel crucial para facilitar o retorno de Cartola à esfera artística, proporcionando-lhe uma oportunidade na rádio e auxiliando na reconexão com contatos antigos. Em outubro de 1964, Cartola e Zica oficializaram sua união, revelando ao compositor que seu verdadeiro nome era Angenor, não Argenor, como ele acreditava. Essa descoberta foi feita durante os trâmites para a obtenção da certidão de casamento.

A retomada das composições das composições de Cartola aconteceu, com destaque para “O Sol Nascerá” (1964), imortalizada na voz de Nara Leão, e “Sim” (1965), interpretada por Elizete Cardoso. O restaurante Zicartola, no entanto, perdeu a efervescência inicial e cerrou suas atividades.

Em 1970, Cartola assumiu a posição de hospedado em um show semanal na antiga sede da União Nacional dos Estudantes, no Flamengo, intitulado “Cartola Convida”, refletindo a importância do sambista. A passagem da carreira solo ocorreu em 1974, quando Cartola lançou seu primeiro disco, contendo muitas das músicas já gravadas por outros artistas, incluindo o emblemático “O Sol Nascerá”.

O ano de 1976 trouxe outro LP e um novo sucesso, “As Rosas Não Falam”, uma composição notável escrita por Cartola aos 67 anos. A década de 1970, no entanto, marcou o declínio da saúde de Cartola após uma cirurgia para remover um câncer na tireoide.

Morte de Cartola

Nos derradeiros três dias de sua existência, Cartola, ícone da música brasileira, foi agraciado com a última homenagem em vida, apresentada por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade.[4] O destino, no entanto, traçaria uma despedida melancólica para o mestre do samba, que sucumbiu ao câncer em 30 de novembro de 1980, aos 72 anos.

A comoção em torno da partida de Cartola foi sentida profundamente na quadra da Estação Primeira de Mangueira, onde seu corpo foi velado. O local se transformou em um ponto de encontro para figuras proeminentes do universo musical, com a presença de Clara Nunes, Alcione, Emilio Santiago, Chico Buarque, João Nogueira, Dona Ivone Lara, Nelson Sargento, Jamelão, Roberto Ribeiro, Clementina de Jesus, Martinho da Vila, Gal Costa, Simone, Elizeth Cardoso, Paulo Cesar Pinheiro, Beth Carvalho, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, e muitos outros.

No Cemitério do Caju, Cartola encontrou sua segurança final, enquanto Dona Zica, sua grande paixão, teve a dolorosa despedida, compartilhando o último adeus ao lado de Clara Nunes, amiga e uma das musas do poeta. Em honra ao pedido do saudoso Cartola, no dia 1º de dezembro, durante seu funeral, Waldemiro, ritmista da Mangueira que aprendeu com o mestre a arte de dar vida ao seu instrumento, contribuiu o ritmo para o coro emocionante de “As Rosas Não Falam “. A canção ecoou entre uma pequena multidão de sambistas, amigos, políticos e intelectuais, todos presentes para render suas últimas homenagens. Em seu descanso eterno, o caixão de Cartola ostentava a bandeira do seu tempo amado, o Fluminense.

Após a morte

Ao longo dos anos subsequentes, Cartola foi agraciado com homenagens póstumas, álbuns e biografias que o consagraram como uma das figuras mais proeminentes da música popular brasileira. Em 1981, Artur Oliveira concluiu a composição “Vem”, deixada incompleta por Cartola, e sua colaboração com Marília Trindade Barboza estudou a biografia “Cartola, Os Tempos Idos”, lançada pela Funarte em 1983. No mesmo ano, um álbum póstumo do sambista A iniciativa “Ao Vivo” foi lançada, registrando uma apresentação realizada no final de 1978, em São Paulo.

Em 1984, a Funarte lançava o LP “Cartola, Entre Amigos”. Em 1988, em comemoração ao octogésimo aniversário de Cartola, a gravadora Som Livre lançou o cancioneiro “Cartola – Bate Outra Vez…”, contando com a participação de artistas renomados como Caetano Veloso, Gal Costa, Paulinho da Viola e outros. Leny Andrade contribuiu com “Cartola – 80 Anos”, enquanto Marisa Monte incluiu a composição “Ensaboa” em seu repertório.

Em 1995, Claudia Telles, filha de Sylvia Telles, lançou um álbum-tributo com composições de Cartola e Nelson Cavaquinho. Elton Medeiros e Nelson Sargento gravaram o álbum “Só Cartola” em 1998, e Medeiros se apresentaram com Márcia no espetáculo “Cartola 90 anos”. O grupo Arranco lançou “Samba de Cartola” no mesmo ano.

No início do século XXI, em 2001, a RCA lançou o disco “Verde Que Te Quero Rosa” em formato de CD. O Centro Cultural Cartola foi fundado em 2001, centrado na obra do compositor. Ney Matogrosso lançou o álbum “Cartola” em 2002, dedicando todo o repertório ao mestre da Mangueira. Em 2003, a neta de Cartola descobriu letras inéditas, inspirando o lançamento de novas obras. Beth Carvalho homenageou Cartola com o álbum “Beth Carvalho canta Cartola”.

O ano de 2004 viu a estreia do espetáculo “Obrigado Cartola”, dirigido por Sandra Louzada, no Centro Cultural Banco do Brasil. Em 2007, foi lançado o filme “Cartola – Música para os Olhos”, dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. No ano seguinte, apesar de ter sido acompanhado no centenário pela Estação Primeira de Mangueira, Cartola foi homenageado pelo Paraíso do Tuiuti, contribuindo para sua ascensão ao grupo de Acesso A. O selo Biscoito Fino lançou “Viva Cartola – 100 anos” como parte das celebrações , incluindo gravações anteriores e a única faixa inédita “Basta de Clamares Inocência”, gravada por Mart’nália.

Cartola foi novamente homenageado pela Mangueira no enredo de 2022, ao lado de Delegado e Jamelão.

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João Oscar

João Oscar é jornalista militante de direitos humanos da Baixada e colaborador da ComCausa