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Nós não esquecemos: “Para os Garotos do Ninho”

No dia que completou 3 anos da tragédia no cento de treinamento do Flamengo, a torcida fez uma bonita homenagem aos Garotos do Ninho e o clube nas redes sociais também fez memória.  

A mais marcante é sem dúvidas a carta de um dos sobreviventes hoje jogador do Bragantino Felipe Cardoso intitulada “Para os Garotos do Ninho”. 

Carta na Intrgra: 

Molecada, faz tempo que queria escrever algo pra vocês. Uma palavra, uma mensagem, uma carta… sei lá, mas eu precisava dizer isso de alguma forma.

Três anos atrás, nós enfrentamos o dia mais triste de nossas vidas. Perder vocês, meus irmãos, foi um golpe duro demais. Para mim e para os outros 15 moleques que sobreviveram ao incêndio no Ninho do Urubu. 

Não sei se vocês ficaram sabendo, mas a gente assumiu um compromisso logo depois que voltamos a treinar no Flamengo. Nós não jogaríamos apenas para realizar nossos sonhos ou para ver nossas famílias felizes. Nós decidimos que só fazia sentido voltar se a gente jogasse também por vocês. 

Se eu ainda continuo correndo atrás da oportunidade de me tornar um jogador de futebol, parte de todo suor que tenho derramado é por vocês. 

Eu estaria mentindo se quisesse disfarçar meus sentimentos para que vocês não se preocupassem comigo. Mas, desde aquele dia 8 de fevereiro, não tem sido fácil seguir em frente. 

Calma, eu estou bem. Até assinei meu primeiro contrato profissional — vocês ficariam orgulhosos de mim… Só queria ser sincero aqui, inclusive para que as pessoas não pensem que essa carreira que escolhemos é feita somente de alegrias e troféus. 

A primeira coisa que eu queria contar vocês provavelmente já sabem, mas eu sou muito, muito grato a Deus. Naquela noite, eu ganhei uma segunda chance.  

Parece que eu estava predestinado a dormir no quarto 6, onde o incêndio começou, três dias depois da minha chegada ao clube. 

Como vocês também sabem, eu jogava no Santos antes de ir pro Flamengo. Quando minha mãe me deixou no Rio de Janeiro, ela chorou bastante. Aos 15 anos, eu nunca tinha morado tão longe de casa, tão longe dos meus pais. Mas era para jogar no Flamengo, cara. Flamengo! Um dos maiores clubes do Brasil. 

Valia a pena o sacrifício. 

Naquela quinta-feira, minha mãe me mandou alguns versículos da Bíblia, disse que estava com saudades. Lembro até hoje que ela parecia estar pressentindo algo… Na mesma noite, fiquei até tarde falando com meu irmão, tanto é que só fui dormir realmente de madrugada. 

Eu já estava num sono profundo quando o ar condicionado do nosso quarto começou a pegar fogo. Um motivo a mais para eu ser grato a Deus e aos dois anjos que Ele mandou para me acompanhar no alojamento. 

A princípio, dormiríamos só eu e o Filipe Chrysman no quarto. Mas, antes de ir me deitar, chamei o Jean, que era um amigo muito próximo, para dormir com a gente. Gosto de imaginar que, queira ou não, eu acabei ajudando a salvar uma vida, porque, se ele tivesse dormido no quarto 5, poderia não ter sobrevivido. 

Jean e Felipe acordaram primeiro. Foram eles que me sacudiram na cama: “Vamo, vamo, tá pegando fogo!”. E saíram para procurar ajuda.  

O problema é que eu não entendi direito e voltei a dormir. Depois que eles me chamaram, eu ainda fiquei adormecido por alguns segundos. Nesse momento, parece que foi Deus mesmo falando comigo. “Vai, acorda, vai! Levanta, levanta!” 

Quando abri os olhos, o teto já estava todo escuro, e o quarto cheio de fumaça. Um calor absurdo, muito quente. Tirei a camisa, botei por cima da boca e, meio tonto por ter inalado um pouco da fumaça, fui o último a sair do quarto.  

Achei que o fogo ficaria só no meu quarto, mas ele se espalhou rápido pela parte de cima do contêiner. No impulso, voltei lá pra dentro na tentativa de ajudar os outros. Só que uma parte do contêiner desabou e eu tive que sair novamente.  

Então, demos a volta carregando os extintores e conseguimos quebrar a janela e a grade na parte de trás do contêiner. Quando a gente resgatou o Jonatha Ventura, foi um choque pra mim. Ele saiu com o corpo todo queimado. 

Meu Deus do céu, o negócio é sério mesmo!, eu me liguei. 

Ele gritava de dor e implorava pra gente: “Me desmaia, me desmaia! Por favor, não estou aguentando de dor”.  

Como o incêndio se alastrou por todo alojamento, a gente tentava apagar o fogo para que os outros pudessem sair pela janela. 

Escutei o Bolívia (Rykelmo), que também era de Santos e estava no quarto do lado, gritar duas vezes por socorro. Na segunda, já foi um grito mais baixo. Ele deve ter desmaiado por causa da fumaça. 

Samuel, a gente se emocionou com seu gesto de coragem e amizade. Jogamos a Copa Nike na mesma época, lembra? Assim como o Jean, eu também tinha te chamado para dormir no meu quarto. Mas você preferiu ficar no quarto 2 com o Jorge, que te considerava como um irmão. Você acordou antes e poderia ter escapado, mas tentou tirar o Jorge de lá a qualquer custo. 

Como eu rezei para ver vocês saindo com vida pela porta do alojamento…   

Os Bombeiros nos tiraram da área do incêndio e começaram a apagar o fogo, mas não estavam fazendo movimentos para salvar alguém das chamas. Parece que eles já sabiam que não haveria mais nenhum sobrevivente. 

Quando fizeram uma lista de chamada, faltavam 10 meninos. Nessa hora, todos nós começamos a chorar. Fomos para a parte onde ficam os jogadores profissionais e ligamos a TV. Eu não queria acreditar no que tinha acabado de escutar. 

“Bombeiros confirmam 10 mortes no Ninho do Urubu.” 

As tias que cuidavam da gente no CT entraram em desespero. Uma delas até desmaiou. Foi uma tristeza geral.  

Quando fizeram uma lista de chamada, faltavam 10 meninos. Nessa hora, todos nós começamos a chorar. 

– Felipe Cardoso 

Por sorte, eu percebi que o meu celular estava comigo. Como tinha conversado com meu irmão até tarde, eu devo ter colocado o telefone no bolso depois que desligamos e dormi. 

Ainda de manhã, saíram várias fake news sobre o incêndio. Numa delas, meu nome estava na lista dos 10 que morreram. Minha mãe chegou a passar mal… Ela só se acalmou um pouco quando eu liguei pro meu pai e disse que tinha saído do alojamento sem nem um arranhão. 

Desculpa aí, molecada, por ficar relembrando essas paradas ruins. Mas parece que foi ontem, sabe? São memórias que dificilmente vou esquecer. Eu precisava colocar pra fora um pouco dessa dor, porque, desde aquele dia, só tinha falado sobre o incêndio no meu depoimento na delegacia. 

Contar tudo que presenciei, no mesmo dia, acabou comigo. Foi tão difícil que nunca mais me senti à vontade para falar desse assunto, nem mesmo com a minha família. Recebi ligações de vários repórteres, alguns deles me cercaram no aeroporto e na minha casa em Santos, mas eu não quis falar com ninguém. 

Relembrar a tragédia me machucava — e ainda me machuca. Mas, para vocês, eu tenho que dizer isso. Até para que saibam que eu tentei fazer tudo o que estava ao meu alcance pra tirar cada um de vocês de lá. 

Depois de mais de um mês parados, voltamos aos treinos na base e fizemos um pacto. “Vamos nos superar por eles.” Nossos 10. Foi assim que a gente passou a chamar vocês. 

Apesar da saudade que apertava em nosso peito todos os dias, eu evoluí bastante como jogador no restante daquela temporada. Mesmo na reserva, fui vice-artilheiro do time sub-17. Sempre que entrava, eu fazia gol. Sentia que, com o tempo, eu estava conquistando meu espaço na equipe. 

E aí vem outro baque: no começo de 2020, menos de um ano depois do incêndio, recebo a notícia de que seria dispensado do Flamengo. Caraca, eu não conseguia acreditar! Na verdade, ninguém acreditou. 

Mas, como já tinha sofrido muitas quedas correndo atrás do meu sonho, eu não podia deixar aquilo me desanimar. Eu não podia me entregar. 

E aqui, meus amigos, vocês foram — mais uma vez — a minha inspiração. A tragédia mostrou que, se Deus me deu a chance de escapar do alojamento, é porque tem um propósito para mim. 

Tenho de ser persistente.  

Eu estava com a consciência tranquila. Sabia que tinha feito o meu melhor no Flamengo. Outras oportunidades iriam aparecer, e eu precisava estar preparado para aproveitá-las. E elas apareceram mais rápido do que eu esperava: Bahia, Vasco, Santos me chamando de volta… 

Só que minha mãe não queria que eu fosse para a Bahia, por ser muito longe de casa. Também não queria que eu continuasse no Rio, depois de tudo que aconteceu. E, então, surge um contato do Red Bull Bragantino. 

Um time de São Paulo, que tinha subido para a primeira divisão do Campeonato Brasileiro, bem estruturado, novos ares… Era o recomeço que eu sonhava. Depois de quatro dias de clube, ainda recuperando a minha forma física, eles disseram que iriam assinar um contrato profissional comigo.  

Rapaziada, nessa hora passa um filme na cabeça, viu? 

Primeiro, lembrei da minha mãe. Quando eu passei no teste para jogar no Santos, com nove anos, ela tinha acabado de abrir um salão de beleza em São Paulo. O sonho dela era ser cabeleireira. Mas ela largou tudo para ir morar comigo em Santos. Não é exagero: sem ela, eu não teria chegado até aqui. 

Depois, lembrei de toda minha família, que sempre acreditou em mim. Dos meus avós, que me apoiaram em todas as etapas, ao meu pai, que jogava na várzea e me levava para assistir aos jogos dele. 

Por fim, lembrei de vocês, meus irmãos. Como vocês ficariam felizes quando recebessem minha mensagem no nosso grupo do Whatsapp contando a novidade: Molecada, eu consegui!!! 

Pra vocês terem uma ideia, nenhum outro garoto de 16 anos tinha contrato profissional com o clube. Só eu. O Red Bull Bragantino me acolheu, me tratou com respeito e confiou no meu potencial em menos de uma semana de treinos. Com certeza, eu fiz a melhor escolha possível. 

Desde o dia em que assinei contrato, eu só pensei em jogar pelo time principal. Já estava treinando com o sub-23, confiante de que, em breve, chegaria ao profissional. Mas fui obrigado a ser persistente de novo. Veio a pandemia de covid-19. Um momento muito complicado para a humanidade, que nos afetou demais na base. 

Foi um ano chato, longe da bola, dos jogos e do que eu mais gosto de fazer. Não via a hora de 2021 chegar.  

Nessa temporada, sim, a coisa engrenou. Evoluí ainda mais, em todos os aspectos. Eu era o destaque da equipe.  

Parece até mentira, mas ainda não seria dessa vez que eu ganharia a tão sonhada chance no profissional. Lesão de ligamento cruzado. Num lance bobo, de treino, dei um chapéu no zagueiro e saltei para cabecear a bola. Quando caí, senti um estalo no joelho direito. Ali eu já sabia que tinha rompido. 

Primeira lesão. 

Primeira cirurgia. 

Seis meses de recuperação. 

Como eu disse, não fiquem preocupados. Já me sinto bem melhor. Estou até dobrando o joelho de novo. Tenho fé que logo voltarei aos gramados, com mais disposição do que nunca para alcançar meu objetivo. 

Eu vou chegar lá. 

No dia em que eu fizer minha estreia, vai passar o mesmo filme da assinatura do contrato. Exatamente o mesmo. E a lembrança de vocês será inevitável. 

Nós não esquecemos. 

– Felipe Cardoso 

Sou um sobrevivente, mas, daqui pra frente, quero escrever minha história no futebol só com boas recordações e muitos gols para comemorar, bem do jeito que a gente sonhava lá no alojamento. 

Todos nós estávamos em busca do mesmo sonho. Por isso, coloquei na minha cabeça que eu vou vencer por mim, pela minha família e pelos amigos que se foram. 

 

Nunca vou esquecer vocês, eu prometo. 

Nunca vou esquecer os Garotos do Ninho. 

Nunca vou esquecer os Nossos 10. 

Meus eternos irmãos. 

Athila, Arthur, Bernardo, Christian, Gedson, Jorge, Pablo, Rykelmo, Samuel e Vitor. 

Nós não esquecemos. 

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João Oscar

João Oscar é jornalista militante de direitos humanos da Baixada e colaborador da ComCausa