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Memória: Chacina da Baixada

No dia 30 de março de 2005, noite de quarta-feira, policiais militares mataram duas pessoas e atiraram a cabeça de uma delas para dentro do 15º Batalhão da Polícia Militar em Duque de Caxias. As cenas foram registradas pelo sistema de segurança de uma escola ao lado da unidade. A ação seria uma resposta ao comando da polícia pela “operação Navalha na Carne”, que colocou sob detenção mais de uma centena de policiais e levou vários outros a prisão por desvio de conduta.

Na noite de 31 de março, policiais iniciaram uma sequência de mortes na cidade de Nova Iguaçu e terminaram em Queimados, foram 30 pessoas baleadas e 29 mortos. É até hoje a maior chacina do estado do Rio de Janeiro, chocou o Brasil e ganhou o noticiário internacional.

Noite de terror na Baixada

Na tarde de 31 de março de 2005, segundo investigações, por volta das 04 horas os policiais militares Marcos Siqueira Costa, José Augusto Moreira Felipe, Carlos Jorge Carvalho, Júlio César Amaral de Paula – e junto com eles posteriormente Fabiano Gonçalves Lopes -, se encontraram no bar Aza Branca, na Rua Dom Walmor no centro de Nova Iguaçu. Na frente do bar um gol prata estava parado com as portas abertas.

O grupo passou a tarde bebendo e conversando sobre como fazer uma retaliação as ações da Justiça que estava prendendo PMs que participariam de grupos que operaram ações criminosas na Baixada Fluminense. O roubo de carga, venda de segurança ilegal, assassinatos por encomenda, sequestros de bandidos para extorsão, assaltos acobertados por outros policiais, agiotagem, participação em esquemas de caça níquel, associação com jogo do bicho, a pratica do “arrego” (captação de propina) com o tráfico e comerciantes em situação irregular, entre outras ações ilícitas em que os envolvidos utilizavam sua condição de agentes de segurança do Estado para obter altos ganhos financeiros.

Pouco antes das 20 horas Fabiano Gonçalves Lopes se separou do grupo e, minutos depois, os policiais entraram no carro que saiu do centro de Nova Iguaçu, foi até o bairro Esplanada e acessou a Via Dutra no sentido São Paulo.

Poucos metros após o gol prata com quatro pessoas, três delas encapuçadas, entrarem na Via Dutra avistaram dois jovens andando de bicicleta no acostamento. Era o estudante Rafael da Silva Couto (17 anos), e o ajudante de pedreiro William Pereira dos Santos (20 anos), que voltavam do centro de Nova Iguaçu para casa. Aproximadamente as 20h30, os PMs pararam o carro ao lado e atiraram contra os que morreram em frente a Estrada D, um dos principais acessos para o bairro da Posse, na altura do Km 178 da Dutra.

Após balear os dois jovens, o carro dos policiais teria seguido pela Dutra e no próximo acesso, na Estrada C do bairro da Posse, mataram o cozinheiro José Carlos de Oliveira (39) que passava pelo local no momento por volta de 20h40.

O grupo retornou à via Dutra, cruzaram o viaduto da Posse e, pouco antes das 20h50, assassinaram a travesti Luiz Carlos da Silva (23 anos) na Rua São Paulo 30. Seguiram em frente e mataram o estudante Alessandro Vieira, de 15 anos, na Rua Oliveira Rodrigues Alves. Os dois estavam em um ponto de prostituição de travestis, que já tinha sido local de outros atentados como este.

Os assassinos seguiram pela Rua Rodrigues Alves, entraram na Rua Minas Gerais e acessaram Rua Gama e seguiram sentido o centro do Barrio Cerâmica. Pouco antes da Escola de Samba Flor do Iguaçu, onde existe uma concentração de estabelecimentos comerciais, pararam em frente ao bar Caíque e, por volta das 21 horas, balearam dez pessoas, matando nove. No local foi alvejada a comerciante Elizabeth Soares Oliveira (43 anos); o deficiente auditivo Felipe Carlos Soares de Oliveira (13); os estudantes Bruno da Silva Souza (15), Leonardo Felipe da Silva (15) e Douglas Brasil de Paula (14), que trabalhava em uma padaria da localidade para ajudar a família; o sorveteiro Jonas de Lima Silva (19); o funcionário público Robson Albino (25); o camelô Manoel Domingos Lima Pereira (53); o vendedor Jaílton Vieira (27 anos), que era vizinho ao bar e tinha ido pagar uma dívida de R$ 2,00; e Kênia Modesto Dias (27) esposa de Caíque, que junto com Douglas chegaram a ser socorridos, mas morreram no hospital.

Poucos metros após o bar Caíque, Cledivaldo Humberto da Silva, de 47 anos, estava tomando uma cerveja com a esposa e, ao escutar os tiros, foi até a porta do comercio que estava. Ao avistar Cledivaldo na porta, um dos ocupantes do gol deu ordem do carro parar, sai do veículo e atira sobre o teto. A bala atinge o osso da perna de Cledivaldo que cai no chão. Ele foi o único do episódio da chacina da Baixada a levar somente um tiro, também o único a sobreviver.

Após balearem uma dezena de pessoas no bar, os PMs seguiram pela Rua Geni Saraiva em direção a saída para a Via Dutra. Perto das 21h15, os assassinos passaram pelo centro comercial do bairro Cerâmica e em um local conhecido como ‘curva da morte’, na altura do número 1851, mataram mais duas pessoas: o militar Leonardo da Silva Moreira (de 18 anos), que havia ido encontrar-se com a namorada no portão de casa, e o padeiro César de Souza Penha, de 30 anos.

Seguiram até o final da Rua Geni Saraiva, voltaram para a Via Dutra e seguiram até o município de Queimados. Eram quase 21h30, e os policiais baleara quatro homens em frente à Mania Lava Jato – na Rua Ministro Odilon Braga, no Centro – foram mortos o dono do estabelecimento Luís Jorge Barbosa Rodrigues, comerciante de 27 anos; Wagner Oliveira da Silva (25); Márcio Joaquim Martins (26) e o estudante e ladrilheiro Fábio Vasconcelos (29).

A cerca de um quilômetro dali do lava jato, no Campo da Banha, cinco homens conversavam sobre futebol sentados na calçada de um bar na Rua Carlos Sampaio, quando foram assassinados, quase todos com tiros na cabeça: os estudantes Marcelo Júlio Gomes do Nascimento (16), Marcus Vinícius Cipriano Andrade (15); o cozinheiro Francisco José da Silva Neto (34); o padeiro Marco Aurélio Alves (37), e João da Costa Magalhães (25), pedreiro que estava sentado na porta de casa. Em seguida, o grupo seguiu até a Rua 1, no Bairro Fanchen e executou José Augusto Pereira da Silva (38).

Eram quase 22 horas quando Renato Azevedo dos Santos, de 30 anos, é morto com um tiro na nuca quanto fechava seu lava jato na Avenida Vereador Marinho Hermetério de Oliveira, uma das principais da cidade de Queimado, quase em frente ao cemitério da cidade. Logo depois a última vítima foi o comerciante Calupe Florindo Ferreira, de 64 anos, assassinado na Rua Maria Cândido, no bairro da Glória.

Em cerca de duas horas, em uma extensão de aproximadamente 15 quilômetros entre as cidades de Nova Iguaçu e Queimados, os quatro ocupantes balearam 30 pessoas, matando 29. Em alguns pontos, os assassinos simplesmente passaram atirando de maneira aleatória. As vítimas receberam 96 tiros, e algumas delas foram baleadas 13 vezes. Muitas receberam tiros na nuca e no rosto para se certificarem de que morreriam. Entre as vítimas estavam crianças, estudantes, comerciantes, desempregados, funcionários públicos, marceneiros, pintores e garçons.

Polícia Federal entra no caso

Na manhã seguinte do massacre, a Presidência da República deu ordem para que a Polícia Federal abrisse um inquérito paralelo ao da Polícia Civil do Rio para investigar a chacina. O delegado Marcelo Bertolucci, da Polícia Federal de Nova Iguaçu, passou a integrar a nova frente de investigação. A ordem teria sido dada diretamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o então ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, que conversou por telefone com a governadora Rosinha Matheuso e o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, que acertaram a cooperação federal.

Prisão dos acusados

Na sede da Polícia Federal na Baixada funcionou como uma espécie de QG para fechar o cerco aos responsáveis pelo crime. Por determinação do então secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba, a 1ª Delegacia Judiciária da Polícia Militar, o 3º Comando de Policiamento de Área da PM, e o subsecretária de Planejamento e Integração Operacional acompanham as investigações federais.

Poucos dias após a chacina foram feitas as primeiras prisões. No dia 03 de maio de 2005 a Polícia Federal começou a levar para cadeia policiais militares por suspeita de participação no massacre, alguns deles foram reconhecidos por uma testemunha através de fotografias. Foram 11 PMs presos, praticamente todos do 24º Batalhão de Queimados. A investigação mostrou também que os policiais integravam diversos grupos de extermínio que atuavam nas áreas dos batalhões da Baixada Fluminense.

Denúncia dos envolvidos

Em maio de 2005, o Ministério Público do Rio de Janeiro denunciou onze envolvidos. Entretanto, em fevereiro de 2006, a juíza da 4ª Vara Criminal de Nova Iguaçu – Dra. Elizabeth Louro – admitiu parcialmente a denúncia e pronunciou apenas cinco. Segundo a justiça, somente contra estes foram encontrados indícios suficientes para levá-los ao Tribunal de Júri. Outros quatro foram inocentados e dois foram acusados apenas pelo crime de formação de quadrilha.

PM que negociava delação é assassinado

No dia 11 de outubro de 2006, o cabo da PM Gilmar da Silva Simão, de 35 anos, foi assassinado às 16 horas da tarde a cerca de quatro quilômetros da 4ª DPJM (Delegacia de Polícia Judiciária Militar), local onde estivera minutos antes prestando depoimento como réu de um outro processo criminal. Dois homens em um veículo Astra prata emparelharam com o Gol que Simão dirigia e dispararam pelo menos 20 tiros. O cabo levou 15 tiros. O subtenente PM Francisco Jorge Ferreira Gomes, que o acompanhava, foi baleado na perna.

O cabo PM Simão tinha sido absolvido da acusação das mortes da chacina da Baixada, mas havia sido denunciado pela Promotoria por formação de quadrilha, já que respondia a outros processos criminais com o mesmo grupo de policiais. Segundo investigação, o PM Simão levou ao conhecimento da Justiça, em troca do benefício da delação premiada, uma testemunha chave do caso.

Tentativa de assassinato dentro do Batalhão Prisional

No dia 26 e novembro de 2006, outro envolvidos na chacina da Baixada Fluminense, o cabo PM Marcos Siqueira da Costa, sofreu uma tentativa de assassinato na madrugada, dentro da cela onde estava preso, no Batalhão Especial Prisional (BEP) em Benfica, no subúrbio do Rio. Ele levou oito facadas no peito e na barriga. Foi internado em estado em grave no Hospital da Polícia Militar, no Estácio, mas conseguiu sobreviver ao atentado. Siqueira ia depor á Justiça Militar no dia seguinte e, assim como Gilmar Simão, estava negociando uma ‘delação premiada’.

Condenações

Em agosto de 2005, o soldado PM Carlos Jorge Carvalho, de 32 anos, foi condenado pela 4ª Vara Criminal de Nova Iguaçu a 543 anos de prisão em regime fechado pelo envolvimento na chacina. A pena foi calculada em 18 anos por homicídio duplamente qualificado, mais 12 anos por uma tentativa de homicídio e nove pela formação de quadrilha. Ele também teve a perda do cargo público decretada.

O cabo PM José Augusto Moreira Felipe, considerado um dos mais perigosos, foi condenado a 542 anos de prisão em regime fechado, e expulsão da Polícia Militar. Seu julgamento, que começou no dia 10 de dezembro de 2007, dia dos direitos humanos, também marcou uma serie de ameaças a familiares e colaboradores que acompanhavam o caso e pretendiam realizar uma grande manifestação em frente ao Fórum.

Já em março de 2008, o Tribunal do Júri de Nova Iguaçu absolveu o soldado da Polícia Militar Fabiano Gonçalves Lopes da acusação de ter participado nos assassinatos. Ele se reuniu com os autores no bar no centro de Nova Iguaçu, mas não seguiu o grupo na matança. A juíza Elizabeth Machado Louro da 4ª Vara Criminal anunciou a decisão, mas decretou a perda do cargo público do policial militar, como efeito da condenação e negou ainda o direito de o soldado recorrer em liberdade, mantendo assim a sua prisão.

Em 16 de setembro de 2009, 0 Tribunal do Júri de Nova Iguaçu condenou os últimos acusados, o cabo PM Marcos Siqueira Costa, que foi sentenciado a um total de 480 anos e seis meses de reclusão, e o soldado Júlio César Amaral de Paula, a 543 anos. Ambos em regime inicial fechado. Os sete jurados, entretanto, acolheram o pedido do Ministério Público e absolveram o cabo Ivonei de Souza, que respondia somente por formação de quadrilha.

Familiares e movimentos por justiça

A chacina da Baixada não é emblemática somente por ter sido a de maior número de mortos vítimas de agentes do Estado do Rio de Janeiro. A forma aleatória e a brutalidade a coloca e em um patamar que extrapola todos os parâmetros de humanidade. No decorrer dos últimos 17 anos, a ComCausa praticamente participou de todas as movimentações e debates que envolveram essa tragédia. Esteve junto dos familiares nas caminhadas e atos realizados em Nova Iguaçu e Queimados, que sempre eram complementadas com missas ecumênicas promovidas pela Diocese de Nova Iguaçu.

Nesta luta, destacamos a perseverança de Luciene Silva e Carlinho – pais de Raphael Silva Couto – de Nova Iguaçu. E de Nem Azevedo, irmã de Renato Azevedo dos Santos de Queimados. Esta pessoas que, independente do sofrimento, do medo e do cansaço dos anos, se mantiveram firmes e mantendo a memória de seus entes queridos e acolhendo também diversos outros familiares de vítimas da violência.

Este triste episódio também foi um grande aprendizado para entendermos o quanto essa violência causa de estrago não somente nas pessoas que são diretamente impactadas, mas na sociedade como um todo. Ensinou também que a movimentação dos familiares, o apoio das organizações sociais e a promoção coerente respeitosa na imprensa podem contribuir para que a devida justiça seja feita.

Lamentavelmente, no decorrer de todos esses anos ainda continuamos registrando em nosso Rio de Janeiro altos índios de homicídios interpretados por agentes do Estado.

A violência não acaba no ato do assassinato

Ao analisar este casos, entre tantos outros que acompanhamos, chegamos também a conclusão de que a violência não acaba no ato do assassinato. As consequências da perda estendem-se para muito além do episódio em si. Por conta disso é necessário criar programas para as vítimas dessa e de outras violência. A manifestação por justiça é importante, mas a atenção amorosa, a acolhida tem que fazer parte da luta para ajudar as pessoas a superarem os traumas.

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

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