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Cordobazo: Um marco histórico de resistência popular e luta operária na Argentina

No dia 29 de maio de 1969, às 10 horas de uma ensolarada manhã de outono, um evento transformador teve início na cidade argentina de Córdoba. Os operários da renomada montadora IKA-Renault, localizada no bairro Santa Isabel, no extremo sudoeste da cidade, interromperam sua produção e começaram a marchar em direção à saída da fábrica, percorrendo cerca de oito quilômetros em direção ao centro da cidade.

Córdoba, a capital da província de mesmo nome, situada na região central da Argentina, era a segunda maior cidade do país na época. Desde os anos 1950, várias fábricas da indústria automobilística estrangeira se estabeleceram na cidade, o que também impulsionou o crescimento de fábricas menores que forneciam peças e outros insumos. Além disso, a cidade abrigava a segunda universidade mais antiga da América do Sul, a Universidad de Córdoba, fundada em 1613 e atualmente conhecida como Universidad Nacional de Córdoba (UNC), o que conferiu a ela o apelido de “La Docta”, ou seja, “A Douta”.

Ao longo do percurso da coluna formada pelos operários da IKA-Renault, que inicialmente contava com cerca de quatro mil trabalhadores, outros grupos, como estudantes e trabalhadores de pequenas indústrias ou autônomos, juntaram-se a eles. Quando chegaram à Plaza de las Flores, próxima à Cidade Universitária, encontraram a polícia e, após um breve confronto, a grande coluna se dividiu em colunas menores, avançando pelos bairros de Nueva Córdoba e Güemes, em direção ao centro da cidade.

Paralelamente, do norte da cidade, outra coluna liderada pelo Sindicato de Luz y Fuerza também se formava, recebendo a adesão de grupos menores ao longo do caminho. Pequenos grupos convergiam de diferentes pontos da cidade em direção ao centro, com o objetivo de se reunirem em frente à sede da CGT, a Central General de Trabajadores, onde uma grande manifestação estava programada para ocorrer, mas que acabou se dispersando. À medida que tentavam avançar, os manifestantes se deparavam com a resistência da polícia, porém, determinados, não recuavam. O que inicialmente era um protesto operário logo se transformou em uma rebelião popular, que só seria controlada na tarde do dia seguinte com a intervenção do exército, mas que deixaria marcas profundas na política argentina a curto, médio e longo prazos.

Antecedentes

Para compreender as contradições vividas pela Argentina em 1969, que culminaram no Cordobazo, é necessário retroceder ao final do primeiro governo de Juan Domingo Perón, líder populista e figura política central do país no século XX, eleito em 1946 e reeleito em 1952. “Já em 1951, 1952, era perceptível que o governo peronista havia esgotado os recursos obtidos após a Segunda Guerra Mundial. O governo havia pago juros da dívida e indenizado o capital britânico ao nacionalizar os trens, o que resultou em uma crise econômica decorrente de suas contradições internas”, explica o historiador José Alberto Barraza, doutorando da Universidade Nacional de Córdoba.

Após uma série de atos terroristas desde 1951 e uma tentativa fracassada de golpe de Estado em junho, setores militares antiperonistas conseguiram remover Perón da presidência em setembro de 1955, inaugurando uma ditadura autoproclamada como Revolução Libertadora. Perón foi forçado a deixar o país e se exilou primeiramente no Paraguai, sob a ditadura de Alfredo Stroessner, e depois na Espanha, sob o regime fascista de Francisco Franco.

Em 1957, o general e ditador Pedro Eugenio Aramburu convocou eleições presidenciais, das quais Arturo Frondizi, do partido União Cívica Radical, saiu vitorioso. Frondizi assumiu a presidência em 1958, mas, após conflitos com os militares e o sucesso do peronismo nas eleições regionais, mesmo com Perón no exílio, ele também foi deposto por um golpe em 1962, que levou José Maria Guido, presidente do Senado e membro dissidente da União Cívica Radical Intransigente (UCRI), ao poder. No ano seguinte, novas eleições levaram Arturo Illia, da UCR, à presidência, mas ele também foi derrubado por outro golpe militar em 1966, iniciando a ditadura autoproclamada Revolução Argentina, liderada pelo general Juan Carlos Onganía.

Embora o movimento sindical fosse uma importante base de apoio a Perón, durante seu governo, alguns setores já mostravam sinais de independência em relação à Central Geral de Trabalhadores (CGT), especialmente nas disputas internas das comissões e sindicatos. Isso levou até mesmo ao uso do exército para reprimir uma greve dos ferroviários em 1950. Em 1954, a CGT realizou o Congresso da Produtividade, onde se buscava medidas para aumentar a produtividade e controlar as comissões internas, uma vez que alguém teria que arcar com os custos do declínio econômico. Após o golpe de 1955, parte da CGT, conhecida como “participacionista” ou “burocracia sindical”, defendia a negociação com os militares ou com o governo civil de turno, enquanto outra parte do movimento resistia.

“No final da década de 1950 e início dos anos 1960, uma nova corrente sindical começou a se desenvolver, conhecida como ‘sindicalismo de liberação’, com uma posição claramente voltada para a esquerda”, explica Taurino Atencio, militante histórico do Sindicato de Luz y Fuerza de Córdoba.

“Quando Mena foi morto por um tiro da polícia, encaramos isso como um desafio e a ação se multiplicou no centro da cidade, com barricadas em cada esquina, carros virados e incendiados. A polícia se viu subjugada e se recolheu para os quartéis. A partir desse momento, o centro de Córdoba estava envolto em colunas de fumaça, pois os manifestantes atacavam também os escritórios e estabelecimentos comerciais de várias empresas e de diferentes países. Com a dispersão dos grupos originais de manifestantes devido à repressão, todos estavam misturados, sujos e suados, e não importava quem estava ao lado, havia uma sensação de tranquilidade para expressar de forma ilimitada o descontentamento com os militares golpistas”, relata Taurino Atencio.

O Cordobazo se tornou um marco histórico na Argentina, simbolizando a resistência popular e a luta dos trabalhadores contra a opressão e a repressão. Esse levante popular teve um impacto profundo na política argentina, tanto a curto como a longo prazo, despertando uma consciência coletiva e inspirando outras mobilizações sociais e sindicais em todo o país. As demandas por justiça social, melhores condições de trabalho e uma sociedade mais igualitária ecoaram por todo o país, deixando um legado duradouro na história argentina.

O Cordobazo representou uma ruptura significativa com as estruturas de poder estabelecidas, desafiando a autoridade do governo militar e estabelecendo um exemplo de mobilização popular bem-sucedida. Esse evento histórico continua sendo um símbolo de resistência e um lembrete do poder do povo quando se une em busca de justiça e mudança.

Efeitos

O Cordobazo provocou uma onda de protestos que abalaram a ditadura de Juan Carlos Onganía. O general, que tinha ambições de se manter no poder por pelo menos 20 anos, viu sua posição enfraquecida e foi obrigado a transferir o cargo para outro general, Roberto Levingston, pouco tempo depois, em junho de 1970.

Além disso, o Cordobazo deixou uma marca profunda na esquerda e no movimento sindical de maneira geral. Diversos setores do sindicalismo reivindicaram de alguma forma o evento. “Se você entrevistar alguém da La Cámpora [a juventude do Partido Justicialista], essa pessoa reconhecerá em Córdoba as figuras de Atílio Lopez e Elpídio Torres, ambos peronistas, como a personificação do Cordobazo.

Fonte: Ciência na Rua

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa