DestaqueEntrevistas

Entrevista com João Cândido sobre a Revolta da Chibata

Com 30 anos, João Candido Felisberto emergiu como uma figura central na história brasileira ao liderar aproximadamente 2.000 marujos na Revolta da Chibata contra a liderança da Marinha em 1910. O levante teve como objetivo pressionar o governo a abolir os açoites como forma de punição aos marinheiros, e foi bem-sucedido. No entanto, após a rebelião, João Cândido foi preso e expulso das Forças Armadas, e pouco se falou dele até que, em março de 1947, foi encontrado pelo GLOBO trabalhando como carregador de peixe na Praça XV, no Rio de Janeiro.

 

O marinheiro João Candido Felisberto tinha 30 anos quando foi protagonista de um capítulo da História do Brasil, liderando cerca de 2 mil marujos contra o comando da Marinha na Revolta da Chibata, em 1910. Realizado para pressionar o governo a banir a aplicação de açoites como punição para marinheiros, o motim alcançou seu objetivo. Mas o líder da insurreição foi preso e expulso das Forças Armadas. Pouco se ouviu falar de João Cândido a partir de então, até que, em março de 1947, uma equipe do GLOBO descobriu o ex-militar trabalhando como descarregador de peixe na Praça XV, no Rio.

Em 1947, o ex-militar morava na Vila Rosali, em São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Acordava todo dia a 1h da madrugada para estar às 3h no entreposto de pesca no Centro da capital fluminense. Anônimo para a maior parte da população, Cândido contou ao jornal que, depois de entregar a farda, trabalhou muito tempo na marinha mercante. Naquele período, perdera a primeira mulher e se casara novamente, com Ana do Nascimento. Quando foi encontrado pelo jornal, na manhã gelada de 13 de agosto de 1947, ele já tinha dez filhos. O mais novo, Adalberto Cândido, havia nascido em 1939.

Marinheiro João Cândido o Almirante Negro

João Cândido em 1910, na época da Revolta da Chibata

Naquela ocasião, o líder da Revolta da Chibata não quis falar da rebelião de 1910. “Águas passadas não tocam moinho”, disse ele. Mas, em 1958, o ex-marinheiro voltou a ser entrevistado pelo jornal, na sua casa em São João do Meriti. Aí, então, Cândido deu detalhes sobre a insurreição.

Como nos conta a História, o motim aconteceu de 22 a 26 e novembro de 1910, quando cerca de 2 mil homens se rebelaram contra os açoites aplicados por oficiais brancos como punição em marinheiros negros. Mais de 22 anos haviam se passado desde a Lei Áurea, assinada em 1888, mas a corporação seguia tratando marujos como escravizados. Os insurgentes, então, tomaram oito embarcações na costa do Rio, entre elas os poderosos navios São Paulo e Minas Geraes, recém-construídos na Inglaterra, e apontaram seus canhões para a cidade, que na época era a capital federal. Em seguida, enviaram um telegrama ao então presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca.

“Não queremos o retorno da chibata. Isto é o que pedimos ao Presidente da República e ao Ministro da Marinha. Queremos uma resposta imediata. Se não recebermos tal resposta, destruiremos a cidade e os navios que não são revoltantes”, ameaçava a mensagem.

“O castigo corporal era usual nas Forças Armadas”, relatou João Cândido ao GLOBO, na entrevista em 1958. “A marujada brasileira, nos portos estrangeiros, em contato com marinheiros de outras nações, sentia-se humilhada, pois somente na Marinha do Brasil se usava ainda, em 1910, a pena do castigo corporal. Mesmo no estrangeiro, eram aplicados açoites em nossos marujos, sob a vista de pessoas e de autoridades de outros países. Assim, a ideia da rebelião grassava em toda a marinhagem, até que resolvemos acabar com aquelas cenas humilhantes que desmoralizavam o Brasil. A forma de castigo variava desde a chibata, na Marinha, até a vara de marmelo e a espada, em outras corporações”.

Os marujos levaram algo em torno de dois anos para organizar o movimento. De acordo com o ex-marinheiro, imediatamente alçado à condição de almirante durante a revolta, toda a “marujada” sabia dos planos, e o sentimento contra a chibata era tão grande que não houve caso de delator.

“Na época, muitos estavam aguardando em Londres a construção dos encouraçados Minas Geraes e São Paulo. Eram membros das guarnições que trariam os vasos de guerrear para o Brasil. Formamos, então, lá na Europa, os nossos comitês de conspiração. Onde havia um marujo brasileiro, havia um comitê de conspiração. O plano era aguardar a construção dos dois navios e com eles fazer eclodir a revolta”, narrou João Cândido, acrescentando que a rebelião havia sido inicialmente marcada para 15 de novembro de 1910, dia da posse de Hermes da Fonseca na Presidência da República, mas foi adiada para o 22 do mesmo mês devido a suspeitas de vazamento.

Naquela noite, durante a tomada do Minas Geraes, vários marinheiros e um oficial foram mortos. Os navios controlados por rebeldes também dispararam tiros de canhão contra fortes militares na Baía de Guanabara. Um tiro atingiu um cortiço no Castelo, no Centro do Rio, matando duas crianças.

Com os navios mais poderosos do Brasil nas mãos dos revoltosos, as autoridades do país não viram outra saída a não ser ceder. O Congresso Nacional aprovou uma lei dando anistia aos rebeldes, o que foi sancionado pelo presidente. O governo também concordou em banir os castigos corporais. No dia 26 de novembro, os amotinados deram fim à insurreição. Mas, dois dias depois, Fonseca voltou atrás e promulgou um decreto instituindo a perseguição de marinheiros que representassem risco às Forças Armadas. Mais de 1,2 mil revoltosos foram expulsos da corporação, centenas foram presos e outros tantos, banidos para trabalhar na extração de borracha na Amazônia.

Chamado de “almirante negro” pelo escritor João do Rio, Cândido foi jogado em uma masmorra na Ilha das Cobras, onde dividiu uma cela pequena com mais 17 presos. Após três dias sem comer e beber, e em condições subumanas, apenas o líder da revolta e mais um amotinado sobreviveram. Em seguida, o gaúcho foi trancafiado em uma instituição para doentes mentais, antes de retornar à Ilha das Cobras. Em 1912, Cândido foi julgado e absolvido, mas, àquela altura, já havia sido expulso da Marinha.

Apesar de tudo, na entrevista ao GLOBO em 1958, o líder da Revolta da Chibata disse que não sentia mágoas. “Não guardo o menor rancor da Marinha e sei que hoje se respeita ali a dignidade humana, dentro dos princípios democráticos”, disse o ex-militar, que morreria de câncer, em 1969, aos 89 anos.

Enterro de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1969 — Foto ArquivoAgência O GLOBO
Enterro de João Cândido, líder da Revolta da Chibata, em 1969 — Foto Arquivo – Agência O GLOBO

| Editoria Virtuo Comunicação

| Projeto Comunicando ComCausa

| Portal C3 | Instagram C3 Oficial

João Oscar

João Oscar é jornalista militante de direitos humanos da Baixada e colaborador da ComCausa