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Filho não é Mobília

Somos um grupo de mães, pais, filhos, avôs e avós, madrastas e padrastos. Somos profissionais de muitas áreas, mas somos, especialmente, juízes, advogados, psicólogos e assistentes sociais. Trazemos ao conhecimento de todos o manifesto que inaugura nossa campanha no mês de conscientização e combate à alienação parental. Neste ano de 2021 nosso tema será a mudança dos filhos para local distante desautorizada pelo outro genitor.

Manifesto

A mudança dos filhos para outro município, feita de modo súbito por um dos genitores, é um dos atos mais repudiados pela Lei de Combate à Alienação Parental. O tema é citado explicitamente em pelo menos três dos oito artigos. Não por acaso, sob o mesmo espírito, o Código Civil veda a mudança no inciso V do art. 1.634.

Ainda assim, os operadores do Direito, especialmente o Judiciário, tendem a ignorar o ato e a lei que o repudia. Aliás, cumpre dizer que o já citado inciso do Código Civil segue sendo um ilustre desconhecido. Na doutrina familiarista parece existir um consenso em torno dele; fora dela, contradições e desinformações.

Em um caso de mudança desautorizada pelo outro genitor e sem a supressão judicial de sua outorga, o Ministério Público de São Paulo opinou da seguinte maneira:

Foi estabelecida a guarda compartilhada da criança e, ainda que fosse unilateral, subsiste o poder familiar do genitor. A agravada não pode, sem autorização judicial ou sem consentimento do pai da criança, simplesmente levar o filho consigo para residir em outra comarca.

Em outro caso (idêntico!) o Ministério Público do Rio Grande do Sul opinou na direção oposta:

Com efeito, em que pese compartilhada a guarda do filho comum das partes, é prescindível o consentimento do genitor para que a mãe mude seu domicílio, não havendo necessidade ou utilidade do pleito da apelada.

Note-se que a divergência acima está assentada na interpretação da norma e não na especificidade do caso concreto. Divergências idênticas são frequentes e tem sido relatadas por profissionais de todo o país. Em relação a esse tema, portanto, vivemos um período de insegurança jurídica. A lei é inequívoca: ou a mudança foi autorizada ou não foi. Submeter a questão ao biombo da análise casuística significa reduzi-la ao puro arbitro baseado na simpatia ou na antipatia.

Muitos de nós, advogados, ficamos constrangidos ao ter de informar aos nossos clientes que a jurisprudência tem dito o exato oposto do que diz a lei. Mais difícil ainda é lidar com o sofrimento de um pai ou de uma mãe que teve seu filho levado para longe sem que sua opinião sequer fosse considerada. Muitos desses pais dividiam com o outro genitor não apenas a guarda em sentido jurídico, mas especialmente a custódia física dos filhos, o que amplifica a dor da perda e a revolta ­ já que a realidade fática quase sempre é eclipsada pelo véu da residência habitual do menor.

A fixação da residência habitual do menor na guarda compartilhada tem servido para desigualar aquilo que deveria ser igual. É, nesse sentido, um verdadeiro retrocesso. Entende-se que exista, para usar um termo da psicologia, como objeto de transição para aqueles ainda atados ao modelo superado de guarda unilateral. Ou seja, a fixação da residência é mais uma necessidade emocional daqueles que operam o Direito que das famílias propriamente. Ocorre que ela tem feito inúmeras vítimas nos casos de mudança súbita.

Como explicar para um pai ou mãe que teve seu filho levado para longe que a figura quase retórica do detentor da residência habitual do menor se reveste de uma autoridade absoluta, verdadeira potestade, que se sobrepõe à guarda compartilhada e ao poder familiar igualitariamente dividido em lei?

Outro problema comum nos casos de mudança é a alteração do foro de competência para julgar o caso. O Brasil possui dimensões continentais. A distância entre São Luís, no Maranhão, e Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, é semelhante à distância entre Lisboa e Moscou, o que significa, na Europa, cruzar cinco países: Espanha, França, Alemanha, Polônia e Bielorrússia. Ou seja, além de perder a convivência com o filho, o pai ou mãe descobre que terá de buscar auxílio judicial em local distante, o que na maioria das vezes inviabiliza economicamente a busca pela Justiça. Escrito como uma luva para esses casos, o art. 8º da Lei de Combate à Alienação Parental infelizmente é outro desconhecido sem uso.

Some-se a tudo já dito também o baixíssimo valor dado à relação da criança com aquele genitor que fica, especialmente quando ele é o pai. Ainda que detenha sobre os filhos a guarda compartilhada e a custódia conjunta (que deveriam ser sinônimos), esse pai será sumariamente ignorado.

Surpreendentemente, para o nosso Judiciário, essa relação entre pai e filho é menor que os termos de qualquer justificativa possível. Qualquer desculpa processual é suficiente para justificar a mudança, o que contraria o espírito da lei de Combate à Alienação Parental, que quando fala em justificativa, certamente põe em um dos lados da balança aquilo que há de mais precioso na vida de uma criança: a relação com o seu pai ou sua mãe. De repente São Paulo, o motor econômico do país, não oferece mais empregos. Em outros casos, justificativas escritas a lápis em papel de pão destroem laços de amor e convivência intensa. A justificativa deve ser prévia e capaz de explicitar o benefício que o menor terá ao perder o amor diário com um de seus pais. O aceite em flagrantes casos de mudança injustificada e súbita contraria todo o ordenamento jurídico. É o oposto do que esperava o legislador.

É para proteger a criança que a lei veda a mudança súbita. Nos casos em que isso ocorre, o foro competente para julgar é aquele em que a criança morava antes da mudança. Nada justifica a pressa. Se o outro genitor é distante e desinteressado, mais razão existe para o pedido prévio. Supõe-se que nesses casos o Ministério Público e o Judiciário certamente autorizarão a mudança após ouvir o outro lado. A fuga repentina ocorre justamente quando o outro genitor é presente, pois é nesses casos que o Ministério Público e o Judiciário podem não aceitar a mudança do menor. A mudança desautorizada é sempre alienação parental.

Antes do fim é preciso deixar um ponto bem claro: em caso de negativa, aquele que intenciona mudar levando consigo os filhos pode pedir a supressão da outorga do outro genitor. Todos somos livres para ir e vir e ninguém é obrigado a ficar onde não quer. Porém, o bem-estar dos filhos exige que a mudança seja previamente avaliada com base no supremo interesse do menor.

A legislação segue o espírito da Convenção de Haia. Portanto, quando levada para longe, o ideal é que a criança seja imediatamente devolvida a sua residência habitual. É preciso criar uma cultura de repúdio social e jurídico à mudança súbita do menor. É preciso cumprir a legislação vigente.

Filho não é Mobília.

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa