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Memória: 30 anos da Chacina de Vigário Geral

Na noite de 28 de agosto de 1993, durante a madrugada de domingo, um grupo de policiais militares se encontrava na Praça do Catolé do Rocha, a cerca de 200 metros da favela de Vigário Geral, preparados para extorquir o grupo criminoso que controlava o tráfico na região. Havia informações de que uma carga de cocaína de 67 kg seria entregue aos traficantes naquela noite. Por volta das 9 horas da noite, quatro dos policiais foram mortos, já com o dinheiro em mãos, ao entrarem no carro da polícia e serem alvejados por disparos de arma de fogo.

Flávio Pires da Silva, conhecido como Flávio Negão na época, com 24 anos, era o chefe do tráfico de drogas em Vigário Geral e liderou o ataque que resultou na morte dos policiais José Santana, Luis Mendonça, Irapuan Caetano e do Sargento Aílton Ferreira dos Santos, que caiu para fora da viatura. O sargento era considerado um dos líderes do grupo conhecido como “Cavalos Corredores” do 9º Batalhão da Polícia Militar, localizado em Rocha Miranda.

O criminoso utilizou um fuzil AR-15, considerado um artigo de luxo naquela época entre os traficantes, e teria atraído os policiais para uma emboscada, modificando a rota de chegada da droga na favela. O atentado também teria sido motivado pela morte, no ano anterior, de um irmão do traficante, que foi assassinado pela Polícia Militar.

Represaria pelos assassinatos

Após os assassinatos, a vingança começou a ser planejada durante o enterro do Sargento Ailton. Policiais, ex-policiais, bombeiros e informantes se uniram para realizar um ataque no dia seguinte, em 29 de agosto. Mais de cinquenta homens encapuzados iniciaram o ataque por volta das 23 horas. Na comunidade, havia um clima de apreensão após o atentado, mas, por outro lado, a vitória do jogo da seleção brasileira, que garantiu a classificação para a Copa do Mundo nos Estados Unidos, trouxe uma sensação de normalidade. Assim, após o jogo, muitos moradores foram dormir e outros saíram para comemorar.

Os membros do grupo de extermínio se dividiram em três. Cinco homens passaram pela Praça Córsega em um Santana verde metálico e mataram um rapaz que estava em uma motocicleta, identificado como Fábio. Em seguida, incendiaram a moto e se encontraram com outros indivíduos na Praça do Catolé do Rocha, onde os policiais haviam sido mortos na noite anterior. No local, incendiaram também cinco trailers que vendiam cachorro-quente e refrigerantes. Em seguida, os homens encapuzados, armados com metralhadoras, fuzis e granadas, adentraram a favela pela Rua Antônio Mendes, em frente à passarela sobre a linha do trem que a conecta à Parada de Lucas. Curiosamente, naquela noite, não havia uma Guarnição do BOPE como era de costume.

Um dos grupos entrou no Bar do Caroço, de propriedade do aposentado Joacir, na Rua Antônio Mendes, interrompendo a euforia dos presentes pela vitória da seleção. Eles exigiram documentos dos presentes, mas, mesmo com todos apresentando, saíram do local, lançaram uma bomba dentro do bar e começaram a atirar. Joacir foi atingido e faleceu imediatamente. O serralheiro José dos Santos também morreu no balcão, o enfermeiro Guaracy caiu no salão, o ferroviário Adalberto e o metalúrgico Cláudio foram mortos no depósito, e Paulo César foi assassinado em um corredor sem saída. O motorista Paulo Roberto cambaleou e caiu morto no banheiro, em cima do eletricista Jady, que foi atingido no peito, mas sobreviveu. Ubirajara levou um tiro na coxa, assim como Jady, fingiu-se de morto e conseguiu sobreviver.

Na casa 13 da Rua Antônio Mendes, oito pessoas da mesma família foram mortos.

Era quase meia-noite quando o grupo atravessou a rua e invadiu uma casa, que posteriormente ficou conhecida como “Casa da Paz”. Naquela residência vivia uma família que havia chegado da igreja poucos minutos antes. Pertencia ao vigia Gilberto e sua esposa Jane, que estavam dormindo abraçados com a nora Rúbia e as filhas Lúcia e Lucinéia, no quarto, quando foram despertados pelo som das explosões e dos tiros. Na sala, outros filhos do casal dormiam no sofá. Luciano implorou para não ser morto, alegando ser trabalhador, mas lhe pediram os documentos, ele mostrou e, em seguida, foi executado. Lucinete tombou perto da porta da casa, e Luciene foi estuprada antes de morrer. Na casa havia quatro crianças, uma delas era Núbia, neta de Gilberto e Jane, com dez anos na época.

Os assassinos seguiram percorrendo ruas e becos, executando qualquer pessoa que encontrassem pela frente. O gráfico Cleber estava a caminho de casa, lhe pediram os documentos, ele mostrou e foi morto. Em seguida, mataram Hélio, um metalúrgico desempregado. O mecânico Edmilson, sua esposa e suas duas filhas estavam voltando da casa da mãe dele, onde haviam pegado uma marmita para o dia seguinte, pois o gás havia acabado. Ao entrarem em casa, os policiais o chamaram, ele se aproximou e foi imediatamente morto.

Ao todo, foram 21 mortos sem antecedentes criminais ou qualquer ligação com o tráfico de drogas. Entre as vítimas estavam o estudante Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos, o metalúrgico Hélio de Souza Santos, de 38 anos, Joacir Medeiros, de 69 anos, o enfermeiro Guaracy Rodrigues, de 33 anos, o serralheiro José dos Santos, de 47 anos, Paulo Roberto Ferreira, de 44 anos, motorista, o ferroviário Adalberto de Souza, de 40 anos, o metalúrgico Cláudio Feliciano, de 28 anos, Paulo César Soares, de 35 anos, o gráfico Cléber Alves, de 23 anos, Clodoaldo Pereira, de 21 anos, Amarildo Baiense, de 31 anos, o mecânico Edmilson Costa, de 23 anos, o vigia Gilberto Cardoso dos Santos, de 61 anos, o casal Luciano e Lucinéia, de 24 e 23 anos, respectivamente. Também foram executados Dona Jane, de 58 anos, sua nora Rúbia, de 18 anos, o marido e a filha Lúcia, de 33 anos. No local, perderam a vida também Luciene, prestes a completar 16 anos, e Lucinete, de 27 anos.

O dia seguinte da chacina

No dia seguinte, a atrocidade foi exposta, causando revolta entre os moradores. Armados com paus e pedras, eles impediram a entrada dos policiais na comunidade. Exigiam a presença do governador e do comandante da Polícia Militar para que os corpos fossem retirados e a perícia fosse realizada.

A remoção dos corpos pelos bombeiros começou 12 horas depois e resultou em uma imagem que chocou não apenas o Brasil, mas o mundo todo: os 21 corpos foram expostos em caixões abertos de madeira, conhecidos como “marmitas”, colocados lado a lado diante dos olhares da população ao redor.

A investigação teve como base os depoimentos de um informante conhecido como X-9, que era da Polícia Civil e fazia parte dos Cavalos Corredores. Apesar da baixa credibilidade desse processo, chamado de Vigário Geral 1, devido aos relatos contraditórios e à falta de provas concretas, e da pressa em encontrar os culpados, um mês depois o Ministério Público denunciou 28 policiais militares, 3 policiais civis e 2 informantes.

Um dos 17 policiais presos preventivamente, alegando inocência, gravou várias conversas entre os demais, revelando informações até então desconhecidas, inclusive a participação de policiais na chacina que não haviam sido indiciados. A autenticidade dessas gravações foi confirmada por uma perícia realizada pela equipe do Professor Ricardo Molina, da Unicamp, e a partir desse momento houve uma reviravolta no caso, resultando na soltura de parte dos detidos. O denunciante sofreu quatro atentados e seu filho, com apenas 18 anos, foi executado.

Essa reviravolta levou à abertura de um novo processo em 1995, denominado Vigário Geral 2, que denunciou mais 19 pessoas. Dos julgamentos realizados, apenas 7 indivíduos foram condenados. Dois deles cumpriram liberdade condicional, dois foram absolvidos posteriormente por falta de provas, um foi assassinado em 2007 (sem que fosse explicado o motivo de estar em liberdade quando deveria estar preso), e outro fugiu. O único que permaneceu preso não foi por causa da chacina de Vigário Geral, mas sim por cometer crimes como homicídio, assalto, roubo, porte ilegal de arma e falsificação de documentos. Alguns dos envolvidos nem chegaram a ser julgados, pois morreram durante o curso do processo.

O Brasil foi punido pela OEA (Organização dos Estados Americanos) por violação dos direitos humanos, e foi exigida uma reparação moral para os sobreviventes e familiares, o que acabou sendo efetivado com o pagamento de um auxílio mensal equivalente a três salários mínimos para cada uma dessas pessoas até completarem 65 anos de idade. No entanto, em 2000, o Brasil foi absolvido perante a OEA.

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

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